quinta-feira, 23 de março de 2017

Prefácio a "O Abandono de Deus", de Tomás Halík e Anselm Gruen


Meu Prefácio a O Abandono de Deus, que acaba de sair nas Edições Paulinas: 

Embora não seja entendido em teologia, considero o padre checo Tomás Halík um dos maiores teólogos contemporâneos. Pelo menos é o autor que, na minha modesta opinião,  mostra maior capacidade para se dirigir, usando uma linguagem compreensível, a uma audiência vasta e variada, incluindo tanto crentes como não crentes.  Nascido no pós guerra, em 1948, no seio de uma família checa sem prática religiosa, no tempo em que o ateísmo era “religião oficial” na Checoslováquia, ele próprio tem a experiência da transição de não crente a crente católico. Para isso contribuíram leituras do escritor inglês, também ele convertido ao catolicismo, G. K. Chesterton. O que o atraiu no catolicismo, confessa Halík, foi ela ser a “religião do paradoxo”, tal como transparece em autores como Santo Agostinho (um outro convertido), Blaise Pascal, Soren Kierkgaard, G. K. Chesterton ou Graham Greene. Halík foi ordenado padre clandestinamente na Igreja Subterrânea do Leste europeu, mas hoje, após a queda do muro de Berlim, é professor de Sociologia e de Teologia na Universidade Charles em Praga, para além de capelão universitário. Recebeu vários prémios e distinções, como recentemente o grau de doutor honoris causa na Universidade de Oxford, no Reino Unido, juntamente com, entre outros, o cineasta espanhol Pedro Almodóvar e o economista americano Paul Krugman.

Chesterton escreveu sobre a conversão: “Esta é uma das mais comuns e enganadoras ilusões acerca do que acontece a um convertido. De modo atabalhoado, as pessoas confundem o testemunho normal dos convertidos acerca de terem encontrado a paz moral com a ideia de terem atingido o repouso mental, no sentido em que o repouso tem de inacção... Porém, tornar-se católico não é deixar de pensar, mas antes aprender a pensar.” Pode dizer-se que a teologia de Halík é um bom exemplo do pensamento activo, ao contrário de muita teologia que parece pensamento passivo (cito de novo Chesterton, “a teologia não passa do pensamento aplicado à religião”). Pensar, a respeito da crença em Deus ou da sua falta, não pode deixar de ser um processo multifacetado e de enorme complexidade, onde o paradoxo acaba por ser uma solução inescapável. Neste livro, na senda de outros seus livros publicados com merecido êxito em português (Paciência com Deus, A Noite do Confessor, O meu Deus é um Deus ferido e Quero que Tu sejas!, todos eles editados entre nós pela Editora Paulinas), Halík fala da falta de crença – o ateísmo, ao qual podemos associar o agnosticismo - de um modo paradoxal. Trata-se de um pensamento que provoca, que nos faz pensar: para ele, a crença enriquece-se com a descrença, assim como a descrença se enriquece com a crença. Para ele, uma pessoa poderá ser, em graus variáveis de indivíduo para indivíduo e no mesmo indivíduo com o decurso do tempo, simultaneamente crente e descrente. Quer dizer não há crentes e não crentes, há simplesmente pessoas.

Anselm Gruen, por seu lado, é um monge beneditino que se tornou um dos teólogos actuais mais conhecidos em todo o mundo. Nascido em 1945 entrou aos 19 anos na abadia de  Münsterschwarzach, perto de Wuerzburgo, na Alemanha, onde ainda hoje reside. Ao contrário de Halík, a sua família era religiosa, podendo ter sido influenciado por um tio padre e duas tias freiras, todos eles beneditinos. Estudou Filosofia, Economia e Teologia, tendo obtido um doutoramento nesta disciplina sob a orientação do famoso jesuíta alemão Karl Rahner. Em numerosos livros, cursos e palestras ganhou fama de excelente comunicador. Tem o dom da palavra!  Um bom indicador é o facto de dezenas dos seus livros estarem traduzidos em 35 línguas por esse mundo fora. Em Portugal (na Editora Paulinas, saíram até agora duas dezenas de obras, incluindo Deus, Quem és Tu?, O Que Vem Depois da Morte?, Que Fiz eu para Merecer Isto? e O Livro das Respostas, o que não passa de uma pequena fracção dos seus mais de trezentos livros).  Mais do que um pregador católico, é  um conselheiro espiritual que consegue ultrapassar as fronteiras da sua religião. Talvez isso explique que, em certos círculos católicos, as suas posições, designadas por “humanismo transcendental”, sejam vistas com alguma desconfiança.

Winfried  Norhoff, nascido em 1951, estudou Germânicas e Teologia na Universidade de Tuebingen para se tornar jornalista especializado em temas religiosos e depois editor e autor nestes temas. É dele o mérito de reunir duas figuras tão notáveis da teologia contemporânea, cujos textos sobre o teísmo e o ateísmo se intercalam aqui para  desembocarem num diálogo entre os dois.

Diga-se desde já que existe um grande acordo entre os dois autores principais sobre a relevância e significado do ateísmo no quadro de um catolicismo aberto à realidade de hoje que os dois representam. Partindo de experiências pessoais bastante distintas, ambos pugnam por uma abertura da Igreja aos descrentes, isto é, aos mais descrentes do que aqueles que se reconhecem na Igreja. Os mais crentes e os mais descrentes ganham em falarem entre si. O subtítulo esclarece quanto à intenção comum:  “Quando a crença e a descrença se abraçam.”

 Hálik começa por analisar o que significa ateísmo: a-teísmo = recusa do teísmo. Mas pergunta ele logo de início: que Deus se está a recusar? Para o padre checo não há dúvida de que existem ideias de Deus perfeitamente recusáveis e que algumas dessas ideias estão ainda hoje presente no interior da Igreja. Para ele é Deus mistério, o que implica evidentemente procura, pelo que as certezas acerca de Deus poderão ser obstáculos à verdadeira religião. Halík não receia não só ler com atenção como tentar perceber os maiores descrentes. Parte até do famoso texto do louco de  A Gaia Ciência de Friedrich Nietzsche, escrita entre 1881 e 1887, que anuncia de um modo poético mas imperativo a “morte de Deus”:  

“O louco saltou para o meio deles e trespassou-os com o olhar. ‘Para onde foi Deus?’, exclamou, ‘é o que eu lhes vou dizer. Matámo-lo – vocês e eu! Somos nós, nós todos, que somos os seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos esvaziar o mar? Quem nos deu uma esponja para apagar o horizonte inteiro? Que fizemos nós quando desprendemos a corrente que ligava esta terra ao Sol? Para onde vai ela agora? Para onde vamos nós próprios? Longe de todos os sóis?  Não estaremos incessantemente a cair? Para diante, para trás, para o lado, para todos lados? Haverá ainda um acima, um abaixo? Não estaremos errando  através de um vazio infinito? Não sentiremos na face o sopro do vazio? Não fará mais frio? Não aparecem sempre noites, cada vez mais noites? Não será preciso acender  os candeeiros logo de manhã? Não ouvimos ainda nada do barulho que fazem os coveiros que enterram Deus?

Nietzsche retomou o tema da morte de Deus em Assim falava Zaratustra e em Anti-Cristo. Ao contrário do que é vox populi no mundo cristão, para Halík o filósofo alemão que declarou o óbito da divindade pode ser  uma luz para os crentes em vez de ser um porta-voz das trevas: “Quando Nietzsche surge como um crítico do cristianismo, essa crítica pode ser muito útil aos cristãos; quando Nietzsche se revela um inimigo do cristianismo, então os cristãos devem alegrar-se por terem um tal inimigo, um inimigo que perturba e faz pensar”.  Num discurso que proferiu em 2016 na Capela da Universidade de Coimbra, Halik estabeleceu mesmo um paralelo entre Nietzsche e a sua contemporânea Teresa de Lisieux, a freira carmelita francesa mais conhecida entre nós por Santa Teresinha do Menino Jesus. Tanto Nietzsche, que morreu louco tal e qual o seu personagem, como Santa Teresinha viraram as costas a um tempo que, do ponto de vist5ra religioso, se caracterizou pela ênfase no pecado e na piedade. E, lembrou Halík em Coimbra (relembrando-o neste livro), Santa Teresinha passou no período final da sua vida, quando estava atormentada pela tuberculose, pela dura experiência da “noite escura da alma” (a expressão é do poeta carmelita espanhol S. João da Cruz), que consistiu em imaginar-se a partilhar a mesa e o pão com os descrentes, ela própria descrente não em Deus mas na vida eterna concedida por Deus. Houve, portanto, momentos de íntima solidariedade da crente com os descrentes. Declarou a mística, pouco antes de morrer aos 24 anos: O meu Céu é sorrir a esse Deus que eu adoro, quando Ele se quer esconder para testar a minha fé".  Para Halík o combate entre crença e descrença “não é o combate entre duas equipas equipadas com camisolas de cores diferentes, mas sim e frequentemente um diálogo ou um conflito dentro de um coração ou espírito humano.” Isto porque, diz ele, o mundo e a vida são ambivalentes e polifacetados”. Modernamente, é conhecido o caso de Madre Teresa de Calcutá, a freira albanesa que fundou a Congregação das Missionárias da Caridade, que, sabe-se hoje, foi assediada pela descrença ao longo de mais de quatro décadas. Declarou ela:

"Onde está minha fé? Mesmo lá no fundo ... não há nada, mas vazio e escuridão... Se há Deus, por favor perdoa-me. Quando tento levantar os meus pensamentos para o Céu,  há um vazio tão convincente de que esses mesmos pensamentos regressam como facas afiadas e ferem a minha alma."

Essas dúvidas não impediram, contudo, a sua subida aos altares…

Gruen parte não de Nietzsche mas do filósofo alemão igualmente oitocentista Ludwig Feuerbach, para quem a ideia de Deus não passaria de uma “projecção humana (o médico austríaco Sigmund Freud diria mais quando falou de uma “ilusão humana”). Mas concorda no essencial com  Halík, como se deprende da sua afirmação: “Tenho que estar consciente de que no meu coração existem sempre dois pólos: crença e descrença.” Para ele, assim como para o seu mestre Rahner, as provas clássicas da existência de Deus não poderão nunca convencer um ateu. Para Rahner, Deus é um “mistério indescritível e incompreensível”. A crença é atingida por meio de uma experiência interior, não do tipo lógico-racional, mas de um tipo assaz diferente ao qual a teologia chama  graça, um dom que pode ser inato ou adquirido. Que Deus está para lá da razão ficou claro após Santo Agostinho ter escrito: “Se compreendeis não é Deus”.

Gruen cita o filósofo francês ateu de nossos dias André Comte-Sponville, “o ateu pode renunciar a Deus, mas não à espiritualidade”, pelo que existe uma espiritualidade sem Deus. O homem, para esse filósofo, é  “finito, aberto ao infinito”, sendo a espiritualidade precisamente essa abertura ao infinito. Faltará muito pouco ao ateu para chegar a Deus, parece que apenas o nome de Deus. Claro que a questão não é assim tão simples, pois Deus não é uma coisa, nem uma pessoa semelhante ao ser humano, apesar de, na Bíblia, estar escrito que o homem foi feito “à imagem e semelhança de Deus”. Há várias ideias de Deus para diferentes crentes. E algumas afastam-se bastante do ser humano. Para Albert Einstein, o físico nascido na Alemanha que representa os mais altos cumes do pensamento científico no século XX, não existia um Deus pessoal, capaz de falar aos homens como podemos ler no Novo Testamento. O sábio, apesar de descrente num Deus pessoal, era crente num Deus definido, à maneira do judeu heterodoxo Bento Espinosa, como a harmonia universal, a beleza e simplicidade das leis da física.

O Cristianismo é, para Halík, a religião dos paradoxos. Para Chesterton, Jesus Cristo é o “melhor Deus para os ateus”, uma vez que, se estes tivessem de escolher uma religião, deveriam preferir uma em que Deus, ainda que por um só momento, se revelou ateu.  O escritor refere-se ao famoso momento quando Cristo exclama na cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? Halík, no Abandono de Deus, cita o cardeal e teólogo jesuíta checo Tomás Spidlík para chamar aos cristão ex-ateus: “Também nós cristãos fomos ateus durante 400 anos”, frase que significa que os cristãos primitivos eram considerados ateus por recusarem a religião romana. Na mesma linha paradoxística, Halík cita ainda Ernst Bloch, o filósofo alemão, marxista e ateu: Só um ateu pode ser um bom cristão, sendo não menos certo que só um cristão pode ser um bom ateu”. Está aqui bem patente a união dos contrários. Vêm-me à mente as palavras, num contexto completamente diferente (o da filosofia da física quântica, no quadro da qual uma onda é uma partícula e uma partícula é uma onda), do físico dinamarquês Niels Bohr: o oposto de uma grande verdade é outra grande verdade.”

Gruen conclui muito justamente que, para crentes e não crentes, existem espaços de trabalho conjunto, espaços de convivialidade e construção de futuro: a espiritualidade decerto, mas também a protecção do ambiente (em defesa da casa comum que é o planeta), a construção da paz, a procura da justiça e a solidariedade e, finalmente, o gosto pela cultura e pela beleza. Sobre a justiça e a solidariedade, Gruen não tem dúvidas de que na luta contra o sofrimento, na luta por um mundo mais justo, os cristãos e os os ateus podem actuar em conjunto”. Dá um belo exemplo retirado do romance A Peste do francês Albert Camus. O médico ateu, o Doutor Rieux, luta contra a peste bubónica, ao lado do padre católico Paneloux. Quando uma criança acaba por morrer, não resistindo à enfermidade, o padre diz que acaba de compreender o que é a graça. Responde-lhe o médico:
“– É o que eu não tenho, bem sei. Mas não quero discutir isso consigo. Trabalhamos juntos por qualquer coisa que nos une para além das blasfémias e das orações. Só isso é importante”.

O resto do diálogo não está neste livro. Mas eu, motivado pela leitura de Abandono de Deus,  fui reler Camus. A história continua assim:

“Paneloux sente-se junto de Rieux. Parecia comovido.
– Sim -  disse ele -, é verdade,  também o senhor trabalha para a salvação do homem. 
Rieux tentou  sorrir.
– A salvação do homem é, para mim, uma palavra demasiado grande..  Não vou tão longe. É a sua saúde que me interessa, é a sua saúde em primeiro lugar.
Paneloux hesitou.
– Doutor... – disse ele.
Mas deteve-se. Também sobre a sua fronte o suor começava a correr. Depois murmurou: «Adeus» e os seus olhos brilhavam quando se levantou. Ia partir quando Rieux, que reflectia, se levantou também e deu um passo para ele.
– Perdoe-me, mais uma vez. Isto não voltará a repetir-se.
Paneloux estendeu a mão e disse com tristeza:
– E, contudo, não o convenci.
– Que importância tem isso? - respondeu Rieux. - O que eu odeio é a morte e o mal, bem sabe. E, quer queira, quer não, estamos juntos para os sofrer e combater.  - Rieux segurava a mão de Paneloux. – Bem, vê, disse, evitando fixá-lo -, nem mesmo Deus pode agora separar-nos.”

Sim, lido este estimulante livro, fácil será concluir que nem o próprio Deus pode separar crentes e descrentes.

1 comentário:

Anónimo disse...

"Porém, tornar-se católico não é deixar de pensar de pensar, mas antes aprender a pensar.”
O autor deve achar que os ateus não sabem pensar. Vamos encontrar também no livro que não têm valores morais? Parece provável julgando pelo nível da argumentação.

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