sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Saper Vedere…











O bioquímico António Piedade tem mantido uma actividade de divulgação científica e desenvolve actualmente projectos de comunicação visual em ciências da vida. No último número da Revista da Ordem dos Biólogos publicou um interessante artigo dedicado à rápida evolução das tecnologias de virtualização aplicada à ciência, quer para comunicação com o público quer para ensino. É esse artigo que aqui se reproduz.

“Saper Vedere…”
Leonardo da Vinci

A evolução sensorial da espécie humana “privilegiou” a percepção visual do mundo envolvente. À visão estereoscópica, decisiva para o cálculo instintivo das distâncias, adicionou-se uma visão a cores, sensível desde o vermelho ao violeta do espectro solar. Se a primeira garantiu uma interacção geométrica com o espaço, potenciando o manuseamento de objectos, a construção de ferramentas, os gestos primevos de tecnologias futuras, a segunda garantiu a capacidade de detectar e identificar frutos coloridos nutritivos, vegetais tenros, no meio da vegetação densa. Isto parece também ter contribuído para libertar, progressivamente, os maxilares de “tarefas duras”, originando espaço para uma crescente volumetria craniana.

A acuidade visual associada à estereoscopia e à visão a cores deu-nos vantagens competitivas. A capacidade de encontrar à distância alimentos mais nutritivos melhorou em muito, e em nosso favor, a relação entre quantidade e qualidade de nutrientes assimilados e o dispêndio em energia para os obter. Por outro lado, a panóplia de sabores e aromas associados à explosão de cores e nutrientes deve ter dado aos nossos ancestrais prazeres gastronómicos de recompensa nunca antes sentidos.

Estes aspectos caldearam processos cognitivos num córtex cerebral em desenvolvimento e potenciaram a visão estereoscópica colorida à custa de outros sentidos. De facto, possuímos hoje mais células sensitivas à luz na retina do fundo ocular do que todas as restantes células associadas à percepção dos outros sentidos.

Mas de nada serviria recebermos este forte caudal de informação visual do exterior se não tivéssemos um órgão especializado no reconhecimento de padrões visuais, na integração dessa informação com a de outros sentidos, na interpretação e regulação da nossa posição no espaço físico.













Rede Neuronal. Imagem gerada por computador. Take the wind.

Na realidade, e como já foi dito noutro lugar, precisamos do cérebro para ver. O número galáctico de sinapses entre milhões de neurónios permitiu a contemplação de imemoráveis noites estreladas, acolheu o sonho pela aventura da descoberta e do espanto, afastou o medo frio no luar prateado que aquecia a esperança de o dia nascer depressa, de um filho nascer sorrindo, de ter perto e poder olhar para um rosto afável e familiar, para o grupo, desenvolvendo uma sociabilidade nova num piscar de olho, no intervalo de uma sístole ventricular.

Charles Darwin, no seu livro “A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais”, publicado em 1879, sublinha genialmente a importância da visão na fisiologia cerebral, que permite o reconhecimento das emoções nas expressões faciais e corporais. Segundo Darwin, este reconhecimento visual evoluiu entre os animais e está gravado na longa noite da ainda hoje polémica memória biológica das espécies.

Sem a nossa visão não teria sido possível uma representação gráfica e pictórica do nosso mundo. Aliás, parece ser intrínseco, talvez não exclusivo, à nossa espécie contar histórias, percebê-las e recordá-las através de um pensamento visual. Registá-las para a eternidade na parede de uma gruta secreta e umbilical, escavada na madrugada erosiva de rios amnióticos.

Sem a nossa visão, e a sua contínua interpretação cerebral, não teríamos desenvolvido esta capacidade de observar, tão preciosa para a ciência. Sem dúvida alguma, podemos afirmar que o método e os processos científicos são indissociáveis do uso, da percepção e do pensamento visual. Galileu Galilei começou, em 1609, a observar o universo longínquo ampliando a nossa acuidade visual através do seu telescópio. Leonardo da Vinci (1452 – 1519) considerava a observação directa da experiência como essencial para a descoberta. Deu tanta importância à observação que sintetizou o seu processo de visualização e interrogação da natureza através da frase “Saper vedere, Sapio audacter…”, ou seja, conhecer pelo ver, ousar conhecer... De facto, durante o desenvolvimento conceptual e na planificação experimental é requerido muitas vezes aos cientistas um pensamento visual muito activo. Isto quando não é a própria natureza do objecto em estudo algo puramente visual, algo tão precioso na observação da própria vida. Num exemplo, entre tantos outros possíveis, recordemos a janela aberta para mundo celular pelo microscópio, primeiramente utilizado por Antoine van Leeuwenhoek e por Robert Hooke! Desde Schleiden e Schwann (1838) que não conseguimos pensar (ver) a Biologia sem a “sua" unidade básica, a célula, e sem as ilustrações dela, utilizadas tanto para desenvolver (ou criar), como para ensinar e divulgar conhecimento científico.

É de René Descartes a seguinte afirmação: “A imaginação ou a visualização, e em particular o uso de diagramas, desempenham um papel crucial na investigação científica” (1637). Vivemos actualmente numa sociedade tecnológica muito estruturada na imagem e na visualização desta. A utilização de radiação, de apropriado comprimento de onda, permite “ver” os ossos ou os vasos sanguíneos sem que o clínico tenha de destruir tecidos para os desvendar e poder fazer um diagnóstico.

Muitos exemplos marcantes advêm das tecnologias de imagiologia médica. Estas vieram dar um grande impulso para o estudo e conhecimento dos processos cerebrais, assim como no diagnóstico não invasivo de inúmeras desordens neurológicas.
















Rosto feminino com músculos e ossos em transparência. Take the wind.

Talvez um dia, num futuro não muito distante, possamos visualizar o nosso próprio pensamento visual emocionado, como aquele que já nos é permitido através das já rotineiras ecografias que permitem antever os órgãos, o perfil, os primeiros gestos do nosso futuro bebé, sem o incomodarmos na sua calma noite gestacional amniótica.

Com o actual e rápido desenvolvimento da computação gráfica, associado a uma crescente acessibilidade a utilizadores não especialistas, será cada vez mais comum a visualização do “sub-microscópico”, através de representações tridimensionais animadas e interactivas, ou seja, hiper-realísticas.

Será deslumbrante poder “ver” uma célula a dividir-se, em tempo real, na palma da nossa mão, e poder observar as várias etapas sob várias perspectivas, e assim melhor compreender fenómenos aparentemente complexos, mas que se relacionam directamente com o nosso dia-a-dia, com a nossa saúde!













Ver além da pele. Imagem real com hiper-realismo gráfico gerado por computador. Take the wind.

Como ficou dito, a nossa visão a cores estereoscópica moldou a nossa percepção cognitiva do mundo que nos rodeia. Assim, os processos cognitivos estão modelados para reconhecer padrões tridimensionais multicoloridos. Por isto, não será de estranhar que a utilização de recursos educativos baseados em modelos 3D animados facilite uma melhor e mais intuitiva transmissão do conhecimento científico, entre outros. Não será de estranhar que os estudantes apreendam melhor o conteúdo residente em matérias abstractas, se o suporte de transmissão permitir a sua visualização num formato tridimensional. Sem diminuir a importância do suporte livro e os esquemas/diagramas, isto poderá ser particularmente útil na transmissão de conhecimento daquilo que não é visível à vista desarmada, daquilo que precisa de mil palavras para equivaler a uma imagem (2D). Não será de estranhar se, num futuro muito próximo, a literacia visual de professores e alunos vier a receber um enfoque cuidado e transversal a todo o ensino e a toda a prática científica, tal como defende Jean Trumbo, emérita professora de “comunicação visual e media interactivos” na Universidade de Wisconsin-Madison (USA).

Nesta altura em que comemoramos quarenta anos sobre o primeiro pequeno passo do Homem na Lua, poderemos estar muito próximos de saltarmos para um novo patamar de proximidade entre o conhecimento tecnológico e científico e o público, mediado por estas novas ferramentas de visualização multimédia 3D estereoscópicas.

Que ruptura paradigmática ocorrerá quando for comum o nosso médico de família receber o nosso exame cardiológico, por exemplo, anexado a uma mensagem de correio electrónico. Com um leve toque de um dedo indicador, abrir o ficheiro correspondente num programa de visualização adequado e apresentar o nosso próprio coração projectado holograficamente entre nós e ele. Explicar porquê devemos mudar de dieta e de estilo de vida (sentimos visualmente o esforço cansado do nosso miocárdio mesclado com tecido adiposo excessivo!), ampliar a visualização e destacar uma artéria coronária em perigo de obstrução por acumulação local de colesterol em excesso! Olharmos determinados para o nosso coração e percebemos que não temos tido cuidado com ele.

Surgirão também novas ferramentas e perspectivas para o ensino e disseminação do conhecimento científico, aproximando cada vez mais a ciência às pessoas. O futuro da visualização, que já começou, com as suas potenciais aplicações biotecnológicas, trará uma renovada e actualizada visão sobre as interacções entre o genoma, o proteoma e o metaboloma dos seres vivos, o que permitirá, com certeza, novos momentos de deslumbramento e espanto genuíno, aliados à descoberta de novos horizontes de curiosidade que, com certeza, aumentarão o nosso conhecimento sobre o que é a vida.

António Piedade
antonio@takethewind.com
Núcleo I&D Take The Wind
www.takethewind.com - Connecting Science to People
Imagens de Miguel Castro @ Take The Wind

2 comentários:

J. Norberto Pires disse...

Muito interessante.

Cláudia S. Tomazi disse...

"Nunca o homem inventará nada mais simples nem mais belo do que uma manifestação da natureza. Dada a causa, a natureza produz o efeito no modo mais breve em que pode ser produzido". Leonardo da Vinci


"Na realidade, e como já foi dito noutro lugar, precisamos do cérebro para ver. O número galáctico de sinapses entre milhões de neurónios permitiu a contemplação de imemoráveis noites estreladas, acolheu o sonho pela aventura da descoberta e do espanto, afastou o medo frio no luar prateado que aquecia a esperança de o dia nascer depressa, de um filho nascer sorrindo, de ter perto e poder olhar para um rosto afável e familiar, para o grupo, desenvolvendo uma sociabilidade nova num piscar de olho, no intervalo de uma sístole ventricular". António Piedade


O homem nu é o espanto,
sem defesa
sem truma
sem dor.

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