sábado, 23 de agosto de 2008

O segredo da salamandra


O sucesso a nível do nosso espaço de debate de temas diabólicos recordaram-me outros diabos, ou antes, babas de diabos, que li recentemente. Alguns dos nossos leitores lembrar-se-ão certamente de alguns filmes de culto da década de sessenta como o BlowUp de Michelangelo Antonioni (1966) ou o Week End de Jean-Luc Godard, ambos inspirados em histórias do escritor argentino Julio Cortázar. O primeiro foi inspirado no conto Las Babas del Diablo do livro «Las armas secretas» que incluí em conjunto com o «Final del juego» nas minhas leituras de Verão. Este último é de longe o meu favorito, especialmente o conto Axolotl de que transcrevo uma pequena parte:
I began seeing in the axolotls a metamorphosis which did not succeed in revoking a mysterious humanity. I imagined them aware, slaves of their bodies, condemned infinitely to the silence of the abyss, to a hopeless meditation. Their blind gaze, the diminutive gold disc without expression and nonetheless terribly shining, went through me like a message: "Save us, save us." I caught myself mumbling words of advice, conveying childish hopes.They continued to look at me, immobile; from time to time the rosy branches of the gills stiffened. In that instant I felt a muted pain; perhaps they were seeing me, attracting my strength to penetrate into the impenetrable thing of their lives. They were not human beings, but I had found in no animal such a profound relation with myself. The axolotls were like witnesses of something, and at times like horrible judges. I felt ignoble in front of them; there was such a terrifying purity in those transparent eyes. They were larvas, but larva means disguise and also phantom. Behind those Aztec faces, without expression but of an implacable cruelty, what semblance was awaiting its hour?
O axolotl ou Ambystoma mexicanum a que se refere Cortázar é de facto uma espécie simplesmente fascinante. Nativa dos antigos lagos Xochimilco e Chalco, hoje bairros da Cidade do México, não fora esse fascínio e esta salamandra sempre jovem estaria certamente extinta já que hoje ainda em dia restam apenas alguns canais do que foi o lago Xochimilco, um dos quais palco das provas de canoagem e remo dos Jogos Olímpicos de há quarenta anos.

Tal como o chocolatl, o nome desta salamandra que em Nahuatl significa cão de água, tem origem na mitologia asteca. Xolotl, o deus da deformação e da morte e gémeo da serpente emplumada Quetzalcoatl, teria sido morto metamorfoseado em axolotl. Esta espécie apresenta de facto características quasi divinas que a distinguem dos restantes vertebrados. Quiçá para partilhar destas propriedades únicas, o axolotl é uma iguaria muito apreciada no México e dele se fazem elixires muito procurados (o xarope da figura foi obtido de um «primo», o Ambystoma dumerilii).

Mas quais são então as características especiais desta salamandra que a tornam tão especial? Ao contrário do que ocorre com os seus parentes próximos, sapos e rãs, e as restantes salamandras, que passam a viver na terra quando deixam as formas larvais, os axolotls permanecem na água por toda a vida. A razão deste comportamento reside no facto de os axolotls serem neoténicos, isto é, não sofrem normalmente metamorfose e vivem sempre jovens na fase larval, com guelras e barbatanas. A neotenia é a retenção de características juvenis na forma adulta, característica que no sentido lato se pode aplicar à espécie humana e ajuda a justificar o nosso sucesso adaptativo. Em relação aos axolotls poder-se-ia aplicar outros termos, pedomorfose e pedogénese, a última significando reprodução na fase infantil, neste caso na fase larval.

Assim, desde que os primeiros exemplares foram levados em 1863 para o Jardin des Plantes em Paris, onde o personagem de Cortázar os apreciou, o axolotl permanece a espécie de eleição para o estudo do desenvolvimento evolucionário. Mas quiçá a sua característica mais espantosa e mais estudada é a sua capacidade de regeneração. Em vez de desenvolverem tecido cicatricial, as células dos tecidos numa ferida desta espécie revertem a um estados quasi estaminal o que significa que podem regenerar os tecidos afectados na sua totalidade, incluindo membros e orgãos como o coração ou cérebro.

Como refere Gerald Pao, um post doc no Salk Institute for Biological Studies, «Pode-se fazer tudo ao axolotl excepto matá-lo que ele regenera».

O homem apresenta uma capacidade regenerativa muito limitada embora nos últimos anos, os resultados obtidos nos estudos com células estaminais e regeneração em sistemas modelo tenham criado uma nova esperança no sua aplicação ao homem. No entanto, estamos ainda longe de compreender os mecanismos que permitem esta capacidade regenerativa ao axolotl - ou mais limitada a tritões, outras salamandras e peixes teleósteos.

Um dado fulcral para a compreensão dos mecanismos de regeneração passa pelo conhecimento dos genes que o permitem mas pouco se sabe sobre o genoma do axolotl, mais concretamente, não se sabe exactamente que características genéticas lhe possibilitam a regeneração. A situação começou a alterar-se o ano passado quando o projecto «The Regeneration Epigenome of the Salamander Ambystoma mexicanum», liderado por Pao e colegas do Salk, ganhou o 1 Gigabase Sequencing Grant Program da Roche Applied Science.

A equipa de investigação, que pretende agora determinar exactamente em que passo do processo cada gene é activado e determinar o papel de cada gene silenciando genes específicos, sequenciou os genes mais expressados durante a formação do blastema e na etapa de crescimento regenerativo. Descobriram que cerca de 10 000 genes são transcritos no processo, dos quais apenas aproximadamente 9 000 têm correspondência nos humanos e alguns milhares não se parecem com nenhum gene conhecido.

«Pensamos que a maioria destes genes evoluíram apenas nas salamandras para ajudar este processo [regenerativo]», referiu Randal Voss, um biólogo da universidade do Kentucky, que colabora no projecto.

De facto, o genoma do axolotl, um dos maiores genomas de vertebrados sendo cerca de 10 vezes maior que o genoma humano, tem-se revelado inesperado. A sequenciação aleatória de partes do genoma revelou que os genes desta espécie são entre 5 a 10 vezes maiores que os genes de outros vertebrados e que o ADN não codificante entre genes é formado por sequências repetitivas que não foram ainda encontradas em mais nenhuma espécie. De acordo com Pao, não se sabe se estas sequêncas estão envolvidas na regeneração ou em qualquer outro processo assim como não se sabe se são estas características genéticas únicas que permitem a regeneração na salamandra.

David Gardiner, da Universidade da California em Irvine, prefere pensar que esta capacidade regenerativa não deriva de genes unicamente presentes no axolotl e que está apenas dormente nos mamíferos podendo ser acordada com a estimulação génica que a informação fornecida pelo axolotl nos permitirá. «A maioria dos tecidos do nosso braço regenera; é apenas o braço que não regenera. O que falta é o conhecimento de como coordenar a resposta para obter uma estrutura integrada», considera Gardiner numa reflexão que podemos apenas esperar se venha a confirmar num futuro não muito distante.

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