quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Descoberta molécula chave na origem da doença de Parkinson

O doença de Parkinson é uma doença neurodegenerativa causada por um distúrbio nas vias dopaminérgicas que fazem a ligação entre a substância nigra e o gânglio basal, acompanhada por uma diminuição dos níveis do neurotransmissor dopamina.

Esta patologia pode ser medicada com fármacos que conduzam a um aumento dos níveis de dopamina no cérebro. A dopamina não pode ser usada directamente, porque não passa a barreira hemato-encefálica (BHE). Usam-se assim precursores da dopamina como o levodopa, agonistas da dopamina ou inibidores das enzimas que actuam sobre a dopamina removendo-a, como sejam a monoamino-oxidase-B (MAO-B) e a catecol-O-metil-transferase (COMT).

São igualmente utilizados anticolinérgicos, que restabelecem o equilíbrio entre acetilcolina e dopamina, perturbado nesta patologia, e essencialmente ajudam a reduzir o tremor e a rigidez muscular.

Não obstante a existência de uma panóplia de medicamentos que minoram os sintomas que acompanham a doença, não existe cura para a doença de Parkinson.

Um artigo publicado hoje na Acta Neuropathologica poderá abrir o caminho para novas e mais eficazes terapêuticas para o tratamento de um dos mais comuns e debilitantes distúrbios neurológicos. No artigo «Aggregation of α-synuclein by DOPAL, the monoamine oxidase metabolite of dopamine», investigadores da Saint Louis University School of Medicine descrevem a descoberta da substância chave que causa a patologia.

«Pela primeira vez, identificámos o composto que despoleta os eventos no cérebro que causam a desordem. Acreditamos que estas descobertas podem ser utilizadas no desenvolvimento de terapias que de facto parem ou retardem o processo» declarou William J. Burke, o neurologista responsável pelo trabalho.

O composto em questão é um metabolito da dopamina conhecido como DOPAL (3,4- dihidroxifenil acetaldeído) e os cientistas descobriram que é esta molécula a responsável pela agregação da proteina alfa-sinucleína, o que por sua vez provoca a morte dos neurónios dopaminérgicos e leva à doença de Parkinson.

Há muito que se sabe que a alfa-sinucleína - presente na maioria das células do cérebro e cuja função não é inteiramente conhecida, pensando-se que possa estar associada à protecção contra certos tipos de stress - está envolvida na patologia mas não se sabia exactamente o que provocava a aglomeração da proteína. A descoberta de que é o DOPAL que despoleta esta agregação pode levar ao desenvolvimento de terapias neuroprotectoras que evitem a morte dos neurónios dopaminérgicos.

Tratamento luminoso para o cancro

Os principais actores do sistema imunológico são os linfócitos B e T. Os linfócitos B são células que produzem anticorpos ou imunoglobulinas, as proteínas que reconhecem zonas específicas (os epítopos) de bactérias, vírus e outros invasores externos (antígenos). Existem vários tipos de linfócitos T, sendo que as células T citotóxicas são muitas vezes designadas por células T assassinas já que a sua função é destruir esses invasores, nomeadamente os identificados pelos anticorpos.

Há já algum tempo que se utiliza anticorpos monoclonais produzidos em laboratório no tratamento de alguns tipos de cancro. Esta terapia segue normalmente uma de três estratégias: a ligação do anticorpo a um epítopo na superfície da célula cancerosa desencadeia ou um processo de destruição da célula ou sinaliza o sistema imunonológico para atacar e destruir essa célula. A terceira estratégia consiste em produzir um anticorpo ligado a uma toxina ou a um agente radioactivo que destrua a célula a que o anticorpo recombinado se ligue.


O problema destes tratamentos, tal como acontece com a radio e quimioterapia, é que muitas células saudáveis são destruídas no processo, o que resulta em efeitos secundários que podem ser fatais e que são certamente debilitantes.

Este problema pode ser em breve ultrapassado graças ao trabalho de um grupo da Universidade de Newcastle, descrito em dois artigos no último número da revista ChemMedChem, «Light directed activation of Human T-Cells» e «Light activation of anti-CD3 in vivo reduces the growth of an aggressive ovarian carcinoma».

Os cientistas desenvolveram uma tecnologia inovadora que utiliza radiação no ultravioleta próximo (ou UV-A) para activar anticorpos específicos para células cancerígenas. Para isso, envolveram os anticorpos numa capa de óleo que é removida pela luz. Fazendo incidir luz nas zonas afectadas, os anticorpos iluminados activam células T assassinas que destroem as células cancerígenas apenas nessas zonas, minimizando os danos a tecido saudável.

O cientista resonsável pelo trabalho, Colin Self, descreveu o processo como «equivalente a uma bala mágica ultra-específica».

Embora existam alguns perigos associados a tratamentos envolvendo a activação de células T, como os nossos leitores certamente se lembrarão de ver nos telejornais há cerca de ano e meio, esta técnica de activação muito localizada parece minimizar os riscos de «overdrive» do sistema imunológico. Nos ensaios com ratos, de um total de seis tumores de ovário, cinco foram destruídos e o sexto diminuiu muito, sem alterações notáveis no sistema imune dos ratos testados.

A companhia BioTransformations Ltd, fundada por Colin Self para desenvolver esta tecnologia, pretende começar testes clínicos em pacientes com cancros secundários de pele no início de 2008.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Planta da sua casa ou da sua escola?

Um dos grandes e primordiais problemas com que nos confrontamos na área da Educação é a terminologia usada. Seja qual for o assunto abordado, nunca sabemos à partida se os interlocutores usam as palavras com o mesmo sentido que lhes atribuímos. Essa é, no meu entender, uma das razões que levam especialistas, decisores políticos, professores e outros intervenientes no ensino a deixar a discussão dos assuntos mais importantes pela rama. Perde-se tempo e energia a debater sem grandes frutos o significado de vocábulos e expressões, tempo e energia preciosos para pensar no que é realmente essencial.

Acresce que, dentro da dita área, há assuntos mais permeáveis à confusão terminológica do que outros. A educação para a cidadania é um daqueles em que se têm criado e alimentado inúmeros equívocos.

Para explicar esta ideia, detenho-me na expressão vivências dos alunos, que um atento leitor deste blogue considera fundamental evocar na aprendizagem, afirmação com a qual, obviamente, concordo.

Conjecturo que quem leu o meu texto O quotidiano e as vivências dos alunos, perguntará se mudei de opinião em menos de uma semana. Respondo que não e justifico.

As vivências dos alunos podem ser encaradas sob dois pontos de vista: público e privado. Ora, entendo que é o primeiro ponto de vista que deve ser invocado no plano da educação escolar, e não o segundo. No entanto, a avaliar pelo discurso patente em vários documentos curriculares (normativos, currículos, programas e manuais), percebe-se que é o segundo ponto de vista que predomina.

Exemplifico: num determinado manual (e lembro que os manuais são, ou devem ser, reflexo das decisões da Tutela relativamente ao currículo) pede-se aos alunos para desenharem a planta da sua casa. Ora, poderia pedir-se-lhes que desenhassem a planta da sua escola. O propósito pedagógico-didáctico seria exactamente o mesmo e as operações cognitivas que os alunos teriam de realizar também.

Optando-se por esta alternativa, em vez daquela, os alunos mantêm e são ensinados a manter o seu núcleo de privacidade. Por outro lado, não se corre o risco de os pôr em situações delicadas sob o ponto de vista pessoal, de desigualdade social ou outras, uma vez que o espaço da escola é, à partida, de todos, partilhado por todos, conversável entre todos.

Imagem retirada de:
http://novaescola.abril.com.br/ed/154_ago02/imagens/matematica4.jpg

Os espantalhos criacionistas


A falácia do espantalho, uma das mais utilizadas pelos que que não conseguem sequer compreender os temas em debate, basicamente consiste em desviar a discussão para assuntos laterais, fugindo assim à discussão do que está em causa com um ou mais argumentos sem nada a ver, com especial predilecção por aqueles que podem ser interpretados tendenciosamente por uma faixa larga do público alvo. Assim, passam a imagem de que os argumentos do oponente foram rebatidos quando na realidade nem sequer os abordam.

Os criacionistas nacionais de serviço ao De Rerum Natura, que têm uma certa dificuldade em perceber que o espaço de debate de um blog de ciência não é exactamente o mais apropriado para despejarem o seu lixo absurdo e obscurantista, resolveram debitar no anonimato que os caracteriza um exemplo perfeito desta falácia.

No post «Eco-motas: o transporte citadino do futuro?», o anónimo que todos conhecemos debitou uma versão pouco inteligente da falácia criacionista mais comum. Esta reza que se desfizermos um relógio e colocarmos as peças num campo, estas nunca reconstituirão um relógio a não ser que o relojoeiro «repare» o relógio. A falácia assenta no argumento teleológico de William Paley, um teólogo inglês do século XVIII, que se pode resumir em cinco pontos:

1) Os artefactos humanos são produtos de desenho inteligente;
2) O Universo assemelha-se a artefactos humanos;
3) Então o Universo é um produto de desenho inteligente;
4) Mas o Universo é complexo e enorme em comparação com os artefactos humanos;
5) Assim, existe um designer poderoso e inteligente que criou o Universo.

Para Paley (cinquenta anos antes da publicação do livro de Darwin «A Origem das Espécies»), tal como um relógio pressupõe um relojoeiro, a complexidade dos organismos vivos era uma evidência da existência de um criador, um argumento que poderia fazer sentido à luz do conhecimento do século XVIII mas é completamente atávico no século XXI.

A desmontagem magistral deste argumento esteve na base do best-seller de Richard Dawkins, «O Relojoeiro Cego», publicado entre nós pela Gradiva. Como afirmou John Maynard Smith à New Scientist na altura do lançamento:

«O segredo de um bom livro de divulgação científica é fazer-nos compreender as ideias expostas: a boa escrita tem por detrás um pensamento claro. Ao ler O Relojoeiro Cego, senti-me frequentemente atónito com a clareza com que Dawkins vê os problemas. É evidente, contudo, que Dawkins não perdeu o sentido do fascínio com o mundo natural ao ampliar a sua compreensão intelectual deste. Quem me dera saber escrever assim.»

Pensar-se-ia que hoje em dia o conhecimento científico acumulado mostraria a puerilidade da falácia do relógio, nomeadamente considerando que as partes de um relógio são inanimadas e não se alteram ou evoluem. Aliás, esta falácia faz-me lembrar aqueloutras que assentam na total incompreensão do que seja a entropia, também abundantemente debitadas pelos referidos anónimos criacionistas, que confundem entropia com desordem macroscópica e perda de «informação», o que quer que queiram dizer com este dislate.

Em relação ao espantalho do relógio, este vídeo de 9 minutos desmonta de forma muito didáctica as patetadas criacionistas, nomeadamente ilustra o ponto que passa ao lado de todos os criacionistas: o evolucionismo não pretende explicar a abiogénese - a formação da primeira molécula com capacidade de auto-replicação a partir de material não biológico -, apenas a evolução (incontestável) das espécies.

Assim, a objecção criacionista é falaciosa uma vez que o evolucionismo é independente de qualquer hipótese abiogénica, ou seja, apenas explica a evolução das espécies a partir de ancestrais comuns sem propor qualquer teoria sobre como esses ancestrais surgiram. Isto é, se o evolucionismo não trata da abiogénese é apenas natural que não tenha respostas para ela. Nem a mecânica quântica nem a teoria da relatividade têm respostas para a abiogénese e isso não é equivalente a dizer que estão «erradas» e que se deve oferecer como alternativa a ambas uma qualquer explicação religiosa assente na fé e não em factos!

Como refere PZ Myers em relação a este vídeo, que mostra como se pode «evoluir» um relógio, existem exemplos biológicos de organismos que evoluiram relógios celulares, na realidade a maioria dos organismos do planeta parece ter múltiplos relógios, o mais simples dos quais, encontrado nas cianobactérias, já foi abordado no De Rerum Natura. Na realidade, considerando que se pensa que estes procariontes tenham sido os ancestrais de todas as formas de vida na Terra, é muito provável que os relógios celulares actuais tenham evoluído do relógio molecular das cianobactérias primitivas.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Para denunciar uma mentira

A obra ensaística de George Orwell é de extrema actualidade. Infelizmente, muitas pessoas parecem desconhecer o seu ensaísmo, pensando por isso que se trata apenas de um novelista relativamente menor, que escreveu duas parábolas memoráveis, Animal Farm (1945) e Mil Novecentos e Oitenta e Quatro (1949), além de Homenagem à Catalunha (1938), que narra as suas experiências na guerra civil espanhola.

O ensaísmo de George Orwell, pseudónimo literário de Eric Arthur Blair (1903-1950), é um caso raro de sofisticação intelectual, sem deixar contudo de ser firmemente popular: os seus ensaios não foram publicados em revistas académicas, mas sim na imprensa popular. E envergonham muitos artigos das revistas académicas pela precisão da linguagem, sofisticação do pensamento e originalidade de posições. Na verdade, um dos traços emblemáticos de Orwell é a recusa em deixar-se levar pelos preconceitos do seu tempo — pelo pensamento já mastigado e pronto a usar, a que tantos intelectuais, nas universidades e na imprensa popular, deitam mão. A lucidez e a sinceridade são marcas de Orwell que cativam qualquer leitor preocupado com a descoberta da verdade das coisas. Num dos últimos artigos que publicou antes de morrer, "Reflexões sobre Gandhi" (1949), Orwell começa por afirmar que "Os santos devem sempre ser considerados culpados até se provar que são inocentes". Esta surpreendente declaração é o princípio de uma análise das ideias e da actuação política de Gandhi, análise que prima pela procura da verdade. Orwell parte da ideia de que quando um político surge como um santo, sincero e absolutamente honesto, algo de profundamente errado pode estar a acontecer — porque estas são armas retóricas que funcionam demasiado bem junto do povo para podermos aceitá-las sem desconfiança. Mas no decorrer da sua análise Orwell conclui, contra a sua expectativa inicial, que Gandhi é realmente um grande estadista, que deixa atrás de si uma atmosfera política mais límpida.

Orwell expôs-se com uma sinceridade rara ao olhar público, e concentrou como ninguém a atenção no exterior — e não em si mesmo e na sua promoção. Nunca teve gestos que visassem o auto-engrandecimento, como tantos ensaístas vaidosos, talvez em parte porque sempre esteve demasiado ocupado a tentar melhorar o mundo da política com a arma da palavra escrita. A sua sinceridade é particularmente manifesta no ensaio "Por Que Escrevo", de 1946, no qual confessa a vaidade de ver as suas palavras impressas, e que todo o escritor é parcialmente vaidoso. Mas explica também a motivação descentrada que o faz escrever: a preocupação com a verdade e a justiça. "Escrevo porque há uma mentira qualquer que quero denunciar", declara Orwell numa passagem memorável.

No célebre ensaio "Política e a Língua Inglesa" (1946), Orwell desmascara com implacável lucidez a manipulação política que ocorre na escrita lamacenta, obscura, desnecessariamente complicada. Mas mostra também como o uso de uma linguagem com lugares-comuns e metáforas agonizantes denuncia a falta de pensamento do autor, que se limita a reafirmar os preconceitos do seu tempo, sem parar por instantes para se perguntar se tais preconceitos serão realmente defensáveis. O espírito de manada é um dos grandes pecadilhos da humanidade e Orwell um dos seus mais elegantes antídotos. Ao fazer uma lista de seis regras para escrever de modo lúcido, Orwell revela a sua lucidez na última das regras: "Viole qualquer destas regras de preferência a dizer algo obviamente bárbaro". O pensamento de Orwell dá uma prioridade tal à realidade que não se deixa render a regras automáticas que podem sempre falhar em casos concretos.

Numa recensão do livro O Poder: Uma Nova Análise Social, de Bertrand Russell, Orwell começa por declarar que "descemos a um ponto tal que a reafirmação do óbvio é o primeiro dever dos homens inteligentes". Efectivamente, a defesa lúcida e rigorosa da justiça e da verdade parece insípida quando se desceu a um ponto tal de confusão mental que só declarações tonitruantes, e parvas, parecem atrair as atenções. A este respeito, não estamos hoje melhor do que no tempo de Orwell, e estamos talvez pior. Alguns pensadores pretensamente libertários no nosso tempo têm um pensamento em tudo semelhante ao pensamento nazi, mas nem se apercebem disso. Ao elevar a identidade comunitária acima da racionalidade, ao desprezar a verdade e ao defender que toda a argumentação é manipulação, fazem o serviço dos que sempre defenderam os privilégios, a tradição e a autoridade, contra os valores iluministas da razão e da verdade.

Orwell foi um dos primeiros intelectuais de tendência socialista a denunciar o regime soviético. Quando alguns intelectuais defendiam ainda a gloriosa revolução do proletariado, Orwell viu com incrível lucidez o tipo de regime totalitário, inimigo da liberdade e da justiça, que as ideias de Marx inspiravam. E este é outro dos traços distintivos de Orwell: nunca trocou as voltas à realidade para tentar encaixá-la nas suas ideias políticas. Neste sentido, Orwell foi um ensaísta anti-ideológico, pois o pensamento ideológico, marxista ou mercantilista, caracteriza-se por distorcer a realidade para que possa bater certo com as ideias, e é indiferente às consequências concretas que resultam da aplicação das suas teorias preferidas. Compare-se isto com o ensaísmo contemporâneo, em que tantas vezes nem vale a pena ler os artigos dos mais conhecidos ensaístas porque já sabemos de antemão o que vão dizer, pois tudo distorcem para fazer encaixar a realidade na sua ideologia preferida. Orwell era socialista não no sentido de defender qualquer corpo de dogmas, mas no sentido de defender a dignidade das pessoas, a justiça, a verdade e a liberdade.

Mais surpreendente poderá ser para alguns leitores deste blog a lucidez da sua compreensão da ciência — e do disparatado uso retórico que se faz da palavra "ciência". No ensaio "O Que é a Ciência?" (1945), Orwell começa por distinguir lucidamente dois sentidos da palavra: o sentido experimental restrito, que aponta apenas para os resultados de ciências como a química ou a física. Neste sentido da palavra, pensamos num cientista como alguém com uma bata branca a fazer experiências num laboratório. Noutro sentido, a palavra quer dizer algo como um método de pensar criticamente sobre qualquer problema. É neste sentido que a ciência é realmente importante, e não tanto no primeiro, mas a confusão de ambos os sentidos tem um efeito perverso no ensino: Orwell defende que no segundo sentido da palavra precisamos de mais ciência no ensino, mas que geralmente os políticos entendem que mais ciência no ensino é mais ciência no primeiro sentido da palavra. E o argumento de Orwell é que uma besta ignara, sabendo todavia muitos factos científicos, continuará a ser uma besta ignara se desconhecer a filosofia, a literatura, a história ou a sociologia.

A Antígona está a proceder à edição das obras de Orwell. Publicadas estão já Recordando a Guerra de Espanha, Na Penúria em Paris e em Londres, Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, O Caminho para Wigan Pier e Homenagem à Catalunha. Anuncia ainda para breve uma recolha de alguns ensaios, assim como um importante estudo do seu pensamento político, da autoria de John Newsinger, Orwell's Politics. Para quem lê inglês, há uma edição deliciosa e barata da Everyman Library, organizada e prefaciada por John Carey, que contém todos os seus ensaios.

INFINITO EM TODAS AS DIRECÇÕES


Também estive na Gulbenkian a assistir à conferência sobre os limites da ciência. A melhor de todas as intervenções foi, para mim, a de Freeman Dyson, esse físico admirável que é o autor de "Infinito em todas as Direcções", "Mundos Imaginados" (os dois na Gradiva" e "O Sol, o genoma e a Internet" (na Temas e Debates). É precisamente sobre o primeiro desses livros que transcrevo auma minha recensão publicada no "Público" quando o livro saiu. Fiz ligeiras adaptações:

Há autores, chamemos-lhe diletantes, que se põem a falar sobre isto e sobre aquilo sem terem capacidade provada e reconhecida para falarem sobre tudo. Ficam à espera que os seus elevados pensamentos sejam publicados nos jornais. Vê-se que não sabem de tudo aquilo que falam, não sendo por isso de admirar que os leitores fiquem por vezes confundidos.

Há outros autores que falam sobre tudo e, quando o fazem, conseguem dar a ideia de que sabem de tudo aquilo que falam. E, se calhar, sabem mesmo... Entre os últimos, é justo destacar o nome de Freeman Dyson, professor de física em Princeton, nos Estados Unidos. Foi a uma cidade escocesa, enfrentou uma audiência universitária, passou a prosa a limpo e ficou, tranquilo, à espera de ser lido. O livro tem tradução em português e, em correspondência com a largueza de vistas dos conteúdos, intitula-se “Infinito em todas as direcções”. Em 1979 tinha sido publicada uma original auto-biografia de Dyson, intitulada “Disturbing the universe”, que mereceu os elogios da crítica (existe edição brasileira, da editora universitária de Brasília), mas este “Infinito” é, se possível, ainda melhor.

Freeman Dyson é um dos cientistas da geração do norte-americano Richard Feynman, do soviético Lev Landau e outros, que nos finais dos anos cinquenta, estavam em plena pujança e laboração intelectuais. Trabalhou na electrodinâmica quântica e na teoria do magnetismo. A reputação que ganhou nesses e noutros assuntos (bem merecia o Nobel!) permitiu-lhe depois dedicar-se à conjectura arrojada sobre o futuro do homem no espaço. Algumas das suas ideias são de ficção científica (a exploração humana de meteoros, a construção de uma esfera oca a envolver parte do sistema solar, a viagem às estrelas com propulsão nuclear, etc.). Nos livros que percorrem a fronteira grande e sempre sedutora entre a ciência e a ficção científica, Dyson tem sempre direito a várias referências. No entanto, a sua condição de físico teórico e espírito livre nunca o levou a evitar ou desdenhar o confronto com matérias tecnológicas, económicas e políticas bem concretas.

A tese central do livro é enunciada por Dyson logo no início: “Como hipótese de trabalho para explicar o enigma da nossa existência, sugiro que o nosso universo é o mais interessante de todos os universos possíveis e o nosso destino, como seres humanos, é tudo fazermos para que assim seja”. No fim, retoma o mote: “O universo está construído de acordo com um princípio de diversidade máxima, que opera tanto ao nível mental como físico e sustenta que as leis da natureza e as condições iniciais são de forma a tornarem o universo tão interessante quanto possível. Como resultado, a vida é possível mas não demasiado fácil”. Um universo sem vida ou um universo onde a vida fosse demasiado fácil seriam desinteressantes...

“Infinito em todas as direcções” é, como o título indica, uma viagem para todo o lado, feita por um espírito que ama as viagens, as descobertas, os enigmas e a sua decifração. Na primeira parte, ensaia uma viagem às supercordas, às borboletas, a Manchester (capital da diversidade) e a Atenas (capital da unidade), aos problemas da origem da vida e do fim do universo. Na segunda parte, vai em excursão a temas como a tecnologia, a política e a guerra, as escolhas nada fáceis que são frequentemente colocadas à razão humana. O autor avisa que os actos humanos não têm que ser determinados apenas pelos ditames da ciência. Apela à tolerância e à humildade. Existe, por um lado, um infinito para a ciência percorrer e, por outro, um infinito de opções para o homem escolher e seguir. O universo é grande e grande é também a capacidade de acção humana. O infinito do mundo espraia-se em todas as direcções, incluindo também as direcções do homem.

Fica para o fim a referência às posições teológicas da Dyson, que nos podem confundir. Mandam os escritos sagrados “não invocar o santo nome de Deus em vão”, mas alguns físicos (P. Davies, em “Deus e a Nova Física”, S. Hawking, em “Uma Breve História do Tempo”, H. Reeves, em “Malicorne”, etc.) não resistem a invocar Deus (se existir Deus, Ele saberá se em vão). Freeman Dyson também arrisca neste livro uma breve incursão pela teologia, embora ciente de que esta é muito diferente da física. Usa a palavra “Deus” numa acepção invulgar, que ele se esforça por explicar. Não se trata de uma metáfora banal, como se encontra em muitos autores, pois impressiona pela imaginação e profundidade. O discurso directo é aqui insubstituível: “Entre a matéria, tal como a observamos no laboratório, e a mente, tal como a observamos na nossa consciência, parece existir apenas uma diferença de grau, não da espécie. Se Deus existe e nos é acessível, então a sua mente e a nossa poderão, deste modo, diferenciar-se somente em grau e não em espécie. Permanecemos, por assim dizer, a meio caminho entre a imprevisibilidade da matéria e a imprevisibilidade de Deus”.

Dyson chega a adoptar as heresias do italiano Socinus que viveu no século XVI quando escreve: “Deus não é omnisciente nem omnipotente. Aprende e cresce à medida que o universo se expande. Não pretendo compreender as subtilezas teológicas a que esta doutrina conduz se a analisar em pormenor. Considero-a meramente congenial e consistente com o senso comum científico. Não faço nenhuma distinção clara entre a mente e Deus. Deus é aquilo em que a mente se transforma quando esta passa para além da escala da nossa compreensão”. Um universo sem Deus seria, apud Dyson, tão desinteressante como um universo sem vida ou um universo com vida mas onde a vida fosse fácil.

— Freeman Dyson, “Infinito em todas as direcções”, Gradiva, 1990.

O HOMEM QUE FAZIA PERGUNTAS


Texto de NUNO GALOPIM saído no "Diário de Notícias" de hoje sobre o livro de Carl Sagan recentemente publicado em português "As Variedades da Experiência Científica":

Textos inéditos de Carl Sagan são agora reunidos em 'As Variedades da Experiência Científica', livro que abre uma colecção na qual a Gradiva vai republicar a integral da sua obra. Seguem-se, brevemente, as reedições de 'Sombras de Antepassados Esquecidos' e 'O Cérebro de Broca'..

"Se não concordares com um homem, deixa-o viver. Não encontrarás outro em cem milhões de galáxias...
" Esta é a frase de Carl Sagan de que Ann Druyan mais gosta. A mulher que com ele viveu e agora assina a introdução de As Variedades da Experiência Científica, livro de inéditos que a Gradiva acaba de lançar entre nós, falou em exclusivo ao DN sobre estes textos e o homem que os deixou. Este é um livro que junta uma série de ideias apresentadas em conferências e que reflecte sobre temas caros a Carl Sagan, nomeadamente um antigo debate entre o pensamento religioso e o científico.

"O que torna a ciência tão poderosa é a sua capacidade para questionar, incessantemente, as coisas. E essa é uma diferença fundamental", explica Ann Druyan, para quem o verdadeiro antagonismo não se estabelece entre a ciência e a religião, mas sim entre aquela e o fundamentalismo. "Não creio que esta possa coexistir com o fundamentalismo", sublinha. "São perspectivas radicalmente distintas sobre o mundo. Enquanto uma diz que não se pode questionar nada, a outra defende que se deve questionar absolutamente tudo! A única coisa sagrada é poder questionar. Fazer perguntas, usar o pouco que sabemos para poder gerar novas questões. As metodologias são diferentes, assim como os seus objectivos distintos", sublinha.

Ann Druyan recorda, todavia, o grande interesse de Sagan pela reflexão sobre o divino. E lembra inclusivamente um encontro a que teve "o privilégio de comparecer" com o Dalai Lama. Desse momento lembra que terão discutido que, "se a ciência descobrisse uma nova forma de encarar qualquer coisa que contradissesse os fundamentos do budismo, então o budismo teria de ser repensado".

Sagan era agnóstico "como a ciência o pede", explica Ann Druyan. Ou seja, "na ausência de factos, de evidências, só se pode viver com a pergunta". Era, como lembra, "um agnóstico na verdadeira essência da palavra: não sabia. Não era, portanto, ateu. De resto, Carl dizia que o ateísmo era uma forma de reacção ao excesso de zelo religioso. Excessos, alguns, horrendos. Mas sabia que não havia uma resposta científica para Deus." E da dúvida nasceram reflexões, muitas, algumas delas apresentadas neste livro agora publicado.

Ann Druyan partilha muitos destes ideais. E com Sagan viveu muitas das suas dúvidas e reflexões. Ainda hoje debate estes temas. E acrescenta que, muitas vezes, algumas "religiões tornam-se ortodoxas, ficam agarradas a uma visão única das coisas". Ressalva que a ciência faz o oposto. "E por isso é que a ciência nos leva ao exterior do sistema solar. Chegámos a muitas das luas dos planetas exteriores..." Ou, como depois acrescenta, permite-nos contemplar "a consciência da vastidão do cosmos. Podemos ver dez mil galáxias numa mesma imagem do Hubble... Permite ter uma perspectiva mais abrangente".

No texto de introdução às "Variedades da Experiência Científica", Ann Druyan sugere que, à sua maneira, Carl Sagan obtinha um "conforto espiritual" na ciência. Ao DN explicou o que queria dizer com estas palavras: "Se [Carl] pudesse responder a uma boa questão, se pudesse ir em busca de uma resposta, ele tinha esse tipo de conforto. Tinha uma curiosidade apaixonante."

A Ciência Terá Limites?

Sobre a cobertura mediática da Conferência Gulbenkian 2007 que se realizou a 25 e 26 de Outubro no Auditório 2 da Fundação, deixamos os nossos leitores com a opinião de Luís Alcácer.

Ao ler textos de jornalistas sobre ciência, pergunto-me, quase sempre, se os artigos sobre outros assuntos, como economia ou política, são igualmente inexactos e tendenciosos.

Vem isto, a propósito do artigo do Expresso de sábado, 27 de Outubro, de Virgílio Azevedo, àcerca da conferência Gulbenkian sobre os limites da ciência [1]. Ao publicar apenas a entrevista a John Horgan, um jornalista polémico, como ele próprio diz, e ignorando a opinião da maioria dos cientistas presentes na conferência, está este jornalista a prestar um mau serviço à sociedade. Porque não fez também uma entrevista a Freeman Dyson, por exemplo? Teria uma opinião global e esclarecida, e que, creio poder afirmar, partilhada pela grande maioria dos profissionais de ciência, presentes ou não na Gulbenkian.

John Horgan não tem formação científica. O próprio George Steiner, considerado um dos expoentes máximos da cultura europeia, revela uma enorme ignorância dos assuntos científicos ao enunciar as causas da crise actual da ciência, como rebateu Freeman Dyson.

Qualquer profissional de ciência, e chamo profissional de ciência a qualquer pessoa, que com a formação e os instrumentos adequados, perscrutou a natureza, quer seja um teórico, quer seja um experimentalista, em qualquer domínio científico, não terá muitas dúvidas em reconhecer que a ciência não tem limites, nem se afigura que venha a ter falta de assunto.

Os cientistas não questionam os limites da ciência como disse João Caraça, no início da sessão final da conferência. Os obstáculos que se colocam à sua continuidade advêm da ignorância, iliteracia e indiferença dos políticos, dos "media" e de grande parte da sociedade, e sobretudo da crescente onda de irracionalidade, fundamentalismo e superstição que paira sobre nós, e de que são exemplo, os comentários deste "blog". A ciência tem reivindicado, durante um longo período, a capacidade de prever o futuro, ou seja, é um substituto dos deuses, e parece que este facto não tem sido bem aceite, disse também João Caraça. Deve ser isso que assusta os criacionistas e fundamentalistas!

É provável, diria mesmo, quase certo, que a ciência, tal como a conhecemos, venha, mais tarde ou mais cedo, a dar lugar a uma nova época de obscurantismo, com eventuais grupos de "empresas" ou "gurus" detentores únicos do conhecimento científico e tecnológico, secreto, que fornecerão os "telemóveis" e os "gadgets" de então, limitando-se o comum habitante do planeta ou talvez até, apenas uma pequena elite, a utilizá-los como objectos mágicos.

A sociedade quer ouvir dizer mal da ciência, como quer ouvir dizer mal de tudo! É da natureza humana, como qualquer cientista do comportamento, melhor do que eu poderá explicar. E os "media" oferecem à sociedade as notícias que ela quer ouvir, salientando sempre os aspectos negativos e omitindo os positivos.

Um jornalista sem formação científica dificilmente poderá falar de ciência, com conhecimento de causa. É preciso experiência vivida. Felizmente existem alguns, com formação científica ao mais alto nível que escrevem sobre ciência de modo esclarecido e não têm a arrogância de ignorar a opinião dos profissionais de ciência. Em Portugal não conheço nenhum. Diz-se por vezes que a culpa é dos cientistas que falam uma linguagem hermética, com arrogância, e não divulgam o seu trabalho junto do público. Muitos não serão bons comunicadores, mas também não lhes são dadas muitas oportunidades.

Só alguém que se tenha embrenhado nas equações da teoria da relatividade poderá entender o que é o espaço-tempo. Só alguém que tenha estudado em profundidade e nos seus aspectos formais (matemáticos), a teoria quântica, poderá entender o que Heisenberg queria dizer com o que, indevidamente, como ele próprio reconheceu, é conhecido como "princípio de incerteza". No entanto, meio mundo fala de relatividade nos mais diversos contextos, e muitos invocam, levianamente, o princípio de incerteza, sem fazer a mínima ideia do que estão a dizer — e não só nas bem achadas metáforas ou figuras literárias à Agustina e Manoel de Oliveira.

[1] A Ciência Terá Limites? (post no De Rerum Natura)

Nota: uma versão um pouco mais curta deste texto foi enviada ao director do Expresso.

Luis Alcácer

Bons manuais de Educação para a Cidadania

Não se deduza do meu texto O quotidiano e a vivência dos alunos, aqui publicado há dois dias, que defendo o afastamento dos planos de estudo da Formação Cívica, Educação para a Cidadania, Formação Pessoal e Social, Educação para os Valores, ou como se queira designar essa vertente curricular destinada a preparar cidadãos na tarefa de participar, com liberdade e responsabilidade, na vida pública. Na verdade, de modo mais ou menos explícito, tal vertente tem constituído uma preocupação da escola ocidental e, em particular, do modelo de escola que emergiu com o Iluminismo, do qual, felizmente, somos herdeiros. A esta ideia dedicarei, a seu tempo, algumas linhas mais.

Também não se deduza que, para orientar tal vertente, rejeito os manuais, ou que considero que estes têm todos a mesma qualidade. Efectivamente, na recolha que fiz dos que se encontram disponíveis no mercado, um deles surpreendeu-me pela positiva.

Trata-se do livro Educação para a Cidadania de Mendo Henriques, Arlindo Rodrigues, Filipa Cunha e João Reis, cuja primeira edição é de 1999. Com ligações académicas à Universidade Católica Portuguesa, os quatro autores colaboram no Grupo de Reflexão sobre Cidadania e Educação e, na sequência da sua diversificada experiência em cursos de formação nesta área, elaboraram o presente guia destinado a vários públicos: professores, formadores e formadores de formadores, pais e encarregados de educação e outros membros da comunidade educativa, decisores políticos e, obviamente, também alunos e formandos.

Foi pensado, portanto, para orientar “o percurso escolar de estudantes e professores em contextos diversos” (página 11), abrangendo todos os graus de escolaridade, desde o básico, passando pelo secundário até ao superior, e todos os trajectos educativos e formativos que o sistema de ensino e outras entidades com responsabilidade nesses trajectos proporcionam.

Podemos perguntar: um manual com um projecto tão ambicioso cumpre, de facto, a função para que foi pensado? Creio que sim.

Uma das razões que me levam a opinar desta maneira está patente logo na introdução, e no 1.º Capítulo, onde se expõe uma definição inequívoca de cidadania. Ora, sendo esta designação plural e ambiguamente apresentada nos documentos curriculares provenientes da Tutela, constitui uma mais-valia acertar o sentido em que irá assentar todo o processo educativo e formativo. Esclarece-se também que o fim desse processo no que respeita à cidadania “é a participação responsável dos cidadãos na vida pública do país, quer através dos processos de representação política quer através do empenhamento nas instituições da sociedade civil, e com compromisso nos princípios e valores fundamentais da democracia”.

Sem pruridos de doutrinamento, recorrentes em documentos congéneres, acrescenta-se abertamente neste que tal participação “exige um corpo de conhecimentos, competências e capacidades de intervenção que a escola deve transmitir”.

Por terem estabelecido tal princípio, os autores não se coibiram de referir claramente os objectivos a alcançar, os conteúdos a adquirir, as palavras-chave a reter, as sugestões metodológicas a seguir (nitidamente centradas na aquisição desses objectivos e conteúdos), apresentando textos para exploração e debate, relato de boas práticas e, ainda, testes de controlo das aprendizagens.
Apensam informação útil: sugestões de livros, artigos, filmes, outros documentos multimédia e endereços da Internet que abordam os temas tratados; referência a diplomas e outras fontes legais que a eles se reportam; contactos de instituições diversas; e um glossário relativo aos conceitos centrais.

Em termos formais, destaca-se neste livro a linguagem clara e rigorosa, a estrutura de fácil apreensão e manuseamento (em unidades, módulos e secções), a sobriedade gráfica (característica tão fundamental quão rara em manuais) adequada em termos didácticos.

Os temas gerais são sete: A Comunidade de Cidadãos; O Estado Soberano; Participação na Democracia; Economia e Governo; Segurança e Defesa; Política Externa; e Comunidade Internacional.

Curiosamente, o primeiro tema abre com a distinção e relação entre público e privado, esclarecendo-se, caso alguma dúvida restasse, que a educação para a cidadania é o domínio do público, e não do privado.


Referência completa da obra:

- Henriques, M.; Rodrigues, A.; Cunha, F. & Reis, J. (2000). Educação para a Cidadania. Lisboa: Plátano (existe reedição mais actual).

Eco-motas: o transporte citadino do futuro?

A Suzuki tem duas motos conceito no 40º Tokio Motor Show, que se inicou na passada sexta-feira na capital japonesa, a Biplane e a Crosscage.

Estas são motos conceptuais e, portanto, ainda longe de entrar em produção. A Suzuki Biplane pretende oferecer ao piloto uma sensação comparável à que este desfrutaria pilotando um avião sem cockpit - como o biplano que o nome sugere. Para isso, explora as possibilidades aerodinâmicas de um modelo totalmente carenado de grande porte e performance, características proporcionadas por um motor convencional de quatro cilindros em V.

A Suzuki Crosscage é um ENV (Emissions Neutral Vehicle) com um interessante quadro em X, cuja fonte de energia são células de combustível - de hidrogénio - do tipo Proton Exchange Membrane (PEM), que alimentam baterias de lítio. O sistema foi desenvolvido pela Loughborough-based Intelligent Energy em conjunto com a Suzuki Motor.

Espera-se que o salão de Tóquio esteja repleto de novos ENV que, tal como a Crosscage, combinem ecologia e performance em grande estilo. Mas acima de tudo, espera-se que os novos veículos quebrem o ciclo vicioso de não serem disponibilizadas infraestruturas para células de combustível porque não há procura que justifique a sua construção e não há veículos comerciais a células de combustível porque ... não há infraestruturas para estes e porque actualmente pelo menos os carros seriam proibitivamente caros.

Os muito mais baixos custos associados à Crossage fazem prever que as eco-motas estarão disponíveis no mercado mais cedo que outros veículos. No entanto, a produção em massa destas eco-motas só começará quando a Suzuki e construtores como a Yamaha ou a Honda considerarem que existem clientes em perspectiva que o justifique.

Protector solar verde

As plantas da família Brassicaceae anteriormente conhecidas como Cruciferae, que incluem, entre outras, brócolos, couve-flor, agriões e couve de bruxelas, apresentam um grupo de compostos secundários armazenados dentro dos vacúolos celulares, os glucosinolatos, com reconhecidas propriedades anticancerígenas.

Quando se processa mecanicamente as crucíferas, cortando-as ou mastigando-as (cruas ou cozidas por menos de três minutos), a enzima mirosinase promove a hidrólise dos glucosinolatos originando D-glucose e uma série de compostos como os isotiocianatos, tiocianatos, nitrilos e indoles, dependendo de parâmetros como o pH, a temperatura e, claro, o substrato sobre que actua.

Os rebentos de brócolos e couve-flor são especialmente ricos no glucosinolato glucorafanina que, por acção da mirosinase, origina sulforafano, um químico com actividade anti-cancerígena, nomeadamente é o indutor mais potente que se conhece de um tipo particular de enzima de fase II, a quinona redutase. As enzimas de fase II convertem carcinógenos activados em produtos menos tóxicos e facilmente excretáveis.

No último número da revista PNAS, o artigo «Sulforaphane mobilizes cellular defenses that protect skin against damage by UV radiation» encontra mais uma aplicação inusitada deste composto extraído de brócolos: como protector solar!

Embora alguns dos mais eficientes protectores solares sejam encontrados em plantas - e especialmente em alguns frutos e flores vermelhos ou azuis que devem a sua coloração a uma família de compostos designados por antocianinas -, estes actuam absorvendo a radiação ultravioleta. O sulforafano não absorve no ultravioleta, a radiação chega às células mas estas estão protegidas pelas enzimas entretanto expressadas, efeito catalítico que dura vários dias.

Extractos de rebentos da planta foram utilizados como protectores pelo grupo coordenado por Paul Talalay, do Centro de Protecção Química contra o Cancro Lewis B. e Dorothy Cullman, e resultaram na redução da inflamação na pele provocada pela radiação ultravioleta. A gravidade do eritema – vermelhidão na pele resultante da exposição ao sol – depende da dose de exposição sem protecção aos raios ultravioleta, e reincidências deste tipo de exposição aumentam o risco de carcinomas de pele.

Num estudo anterior, o mesmo grupo verificou que o sulforafano eleva os níveis celulares de enzimas de fase II quando aplicado na pele. O estudo agora publicado indica que um extracto de rebentos de brócolos, aplicado na pele até três dias antes antes da exposição solar, reduz os eritemas em 37.7% em circunstâncias em que os protectores solares são essencialmente ineficazes.

Embora Plínio o Velho tenha escrito sobre brócolos há quase 2000 anos e se pense que os etruscos desenvolveram este vegetal cerca de 850 anos antes, nos Estados Unidos, onde os estudos foram realizados, os brócolos são um vegetal intimimamente relacionado com quem ocupa a Casa Branca. De facto, a primeira menção aos brócolos em solo norte-americano deve-se a Thomas Jefferson, um dos pais fundadores deste país.

Desde que foram introduzidos comercialmente nos Estados Unidos, em 1923 pela D'Arrigo Brothers Company que plantou sementes italianas em San Jose, California, o consumo de brócolos aumentou regularmente nos Estados Unidos até Bush pai assumir a presidência e declarar «Eu sou o presidente dos Estados Unidos e nunca mais vou comer brócolos». O protesto dos agricultores que enviaram toneladas do vegetal para a Casa Branca não surtiu efeito, o consumo de brócolos só retomou o crescimento depois de Bill Clinton ter sido eleito e Hillary ter declarado na primeira entrevista pública ao New York Times que os Clinton eram «grandes comedores de brócolos».

domingo, 28 de outubro de 2007

Robótica, Golfe e Vitória de Guimarães

Novo post convidado do Norberto Pires, professor de Engenharia Mecânica na Universidade de Coimbra e director do Parque Inovação de Coimbra:

Jogar golfe não é nada fácil.
Na passada sexta-feira, dia 26 de Outubro, fui à grande cidade de Guimarães (bela terra) a um congresso de Engenharia e Gestão Industrial (EGI). Tinha de participar numa Mesa Redonda sobre EGI, por acaso muito interessante, sobre o futuro da EGI em Portugal. Gostei especialmente das curtas conversas com o Eng. Mário Pais de Sousa, empresário e gestor experiente que estava a meu lado na mesa.

No intervalo das sessões fui visitar o Fernando Ribeiro, nosso colega da SPR. Já não o via há muito tempo, e sei que anda sempre a engendrar coisas novas. É um tipo que não sabe estar quieto, e tem uma visão muito prática da engenharia, e uma forma muito correcta de encarar a cooperação universidade – indústria.

Cheguei ao laboratório de robótica do Departamento de Engenharia Electrónica Industrial da Universidade do Minho e perguntei por ele. Disseram-me que ele que estava a jogar golfe.

- “A jogar golfe? O Fernando?”, perguntei eu algo invejoso e ainda muito admirado.
- “Sim, está ali no campo de golfe a testar o robô que recolhe bolas de golfe”, disse-me um aluno enquanto apertava uma roda de um futebolista robótico.

Segui as indicações do aluno e fui lá ter. Lá estavam três pessoas de volta de uns portáteis e via-se um robô a mexer no green de golfe. Aproximei-me, e lá estava o Fernando com dois alunos de fim de curso. Estavam a dar os últimos retoques num robô que ia ser apresentado no dia seguinte à imprensa.

Fizeram questão de me mostrar tudo, com um entusiasmo que é verdadeiramente admirável. Especialmente os alunos. Mostraram os detalhes, a parte de visão, o controlador do robô, o software de bordo (“que corre em Linux...”, diziam não fosse eu imaginar outra coisa), o software remoto, a forma como usavam GPS para obter a posição do robô, e todos os detalhes de como funcionava aquele robô. É natural, aquele era o projecto deles de fim de curso.

- “Ok, desculpem lá mas tenho de ver isso a funcionar. O problema é que não sei jogar golfe!”, disse eu querendo testar como seria num dia normal com um jogador e o robô.

- “No problem. Fazemos uma aula de golfe e apanha já o jeito”, disseram.

E lá apareceram os tacos (recomendaram o taco nº 7) as bolas e as lições. Foi interessante. Uma hora depois já atirava a 100 metros, o que nem é nada mau, apesar de ter um estilo algo tosco e nada elegante. Adiante.



Figura 1: GOLFmINHO, o robô do Golfe.

A Robótica é mesmo muito divertida. Durante uma hora tive uma aula de golfe, e pude ter um robô a trazer-me as bolas que eu enviava para o “green”. Que grande pinta.
Vale a pena ver as fotos e vídeos sobre o robô do golfe (GOLFmINHO) nos links abaixo.


Figura 2: talvez o início de uma nova carreira? Quem sabe!

É mesmo divertido quando as coisas funcionam.

O que é que aprendi, para além de rever amigos? Que isto da engenharia tem a ver com boas ideias, capacidade de realização, entusiasmo e paixão pela nossa actividade. Vi isso nos alunos que orgulhosamente me mostravam o robô do golfe. Vi isso no docente. Vi isso nos funcionários do green que achavam a ideia fabulosa e preparavam tudo com afinco para a apresentação à imprensa do dia seguinte.

Boas ideias, capacidade para as colocar em prática e engenho para desenvolver produtos, e com isso, criar riqueza. É esse o espírito empreendedor, aquele que queremos e devemos desenvolver para que os nossos alunos vejam desenvolvida a sua capacidade empresarial, isto é, a capacidade de transformar ideias em actos.

No final do dia, assisti ao jogo Vitória de Guimarães - União de Leiria: ganhámos 2-1, num jogo cheio de emoção e bom futebol.

Que grande dia. Robótica, golfe e uma grande vitória do Vitória.

J. Norberto Pires

Links:
Reportagem da Sic: vídeo aqui
Reportagem da RTP: vídeo aqui
Resumo do Jogo Guimarães-Leiria: vídeo aqui

Novos tratamentos para a SIDA

A SIDA, o flagelo dos nossos tempos, é causada por um retrovírus, o VIH. Os retrovírus são assim chamados porque o seu material genético é ARN e não ADN, necessitando de uma enzima, a transcriptase reversa (também conhecida como ADN-polimerase ARN-dependente), para realizar um processo de transcrição reverso, isto é, produzir ADN partir de ARN. Quando os retrovírus infectam uma célula, escravizam a maquinaria celular inserindo cADN (ADN complementar do ARN) viral no ADN da célula invadida através de uma enzima chamada integrase.

No caso específico do VIH, são invadidas células que expressam um receptor proteico denominado CD4: macrófagos, células dendríticas e os linfócitos T-auxiliar (também conhecidos como células CD4) - leucócitos que organizam a resposta do sistema imunológico às bactérias, infecções fúngicas e vírus . A ligação da partícula viral à membrana celular, nomeadamente à CD4, é proporcionada pela glicoproteína gp120 existente à superfície do envelope viral. A interacção inicial com o receptor promove uma mudança da estrutura da molécula gp120, de forma a expor o local de ligação a outros receptores, os receptores de quimocina CCR5 ou CXCR4 ou a proteína fusina, existente nas células T. Após ligação da gp120, há uma alteração estrutural da proteína viral transmembranar gp41 de modo a facilitar a fusão membranar com a consequente entrada do vírus na célula.

Uma vez inserido o cADN do vírus no material genético humano, este pode permanecer em estado de latência durante muitos anos. Quando activado, o cADN viral é transcrito em ARN que por sua vez usa a maquinaria celular para produzir (expressar) as proteínas virais que codifica. Estas proteínas são transcritas numa longa cadeia, todas ligadas, e é necessário cortar esta cadeia, o que é feito por uma enzima denominada protease.

As transcriptases reversas por vezes cometem erros na leitura da sequência de ARN, o que resulta no facto de nem todos os vírus produzidos numa célula infectada serem iguais. Os erros de transcrição traduzem-se em pequenas diferenças nas proteínas que constituem a membrana do vírus ou nas enzimas virais o que torna muito complicada a produção de uma vacina. De facto, as vacinas funcionam induzindo a produção de anticorpos que reconhecem sequências específicas das proteínas de superfície e se estas estão em constante mudança os anticorpos deixam rapidamente de ser efectivos.

Assim, os medicamentos actualmente disponíveis para o tratamento da SIDA actuam de forma a inibir passos específicos no ciclo de vida do vírus, nomeadamente a nível das três enzimas já referidas, a transcriptase reversa, a integrase e a protease, bem como a nível da entrada do VIH nas células, isto é, inibindo a fusão celular.


Os anti-retrovirais que actuam a nível da transcriptase reversa (Inibidores da transcriptase reversa, a bolinha vermelha no esquema) são bastante específicos, já que apenas os retrovírus possuem transcriptases reversas, mas veêm a sua acção dificultada devido à constante mutação desta proteína. Foram os primeiros a ser desenvolvidos e dividem-se em inibidores da transcriptase reversa nucleosídeos e não-nucleosídeos e funcionam impedindo a transcrição do ARN viral (a amarelo) em ADN (a azul).

Os inibidores da protease (a bolinha vermelha) são o segundo grande grupo de medicamentos e funcionam ligando-se às proteases (a tesoura no esquema) impedindo que elas cortem a cadeia proteica nas proteínas individuais necessárias à formação de um novo vírus.

Foi aprovado pela FDA há quinze dias o primeiro inibidor de integrase, que impossibilita a inserção do c-ADN viral (a azul) no ADN humano (a vermelho). O novo medicamento, Raltegravir (MK-0518, comercializado como Isentress TM), foi desenvolvido pela Merck e parece ser o medicamento mais potente já desenvolvido, sendo especialmente importante porque é eficaz contra vírus multi-resistentes.

Em 2003, o Laboratório Roche lançou o Fuzeon (enfuvirtide), o primeiro inibidor de fusão e também o primeiro anti-retroviral a agir antes da invasão pelo vírus VIH-1. Maraviroc, um antagonista do CCR5, está em ensaios clínicos de fase III; o inibidor de fusão de segunda geração TRI-999 está ainda em fase pré-clínica. Todos são peptídeos, os dois últimos derivados de uma parte (o domínio HR2) da proteína gp41, a proteína viral que recorta a membrana das células CD4 como a «agulha de uma máquina de costura».


Os tratamentos com inibidores quer de integrase quer de fusão são muito onerosos e são utilizados apenas contra vírus que desenvolveram resistência aos restantes medicamentos. Curiosamente, desde pelo menos 1996 que se sabe que derivados do ácido cafeico, os diCQA presentes em pequenas quantidades em inúmeras plantas - o ácido dicafeoilquínico no grão verde de café, por exemplo -, são inibidores potentes e específicos de integrase, mas, tanto quanto saiba, não foram ainda submetidos a testes clínicos. Recentemente foi descrita uma forma biológica de produzir estes químicos a partir do girassol, que os sintetiza como defesa contra o fungo sclerotinia sclerotiorum. Os cientistas da Universidade de Bona e do Centro de Estudos Europeus Avançados e de Pesquisas (Caesar) que descobriram o processo já patentearam o processo biológico e esperam descobrir qual o gene responsável pela biossíntese para o clonarem em bactérias e ser assim possível a produção de diCQAs da forma barata e em grandes quantidades que a extracção de plantas não permite.

Mas o panorama do tratamento da SIDA pode mudar em breve com o trabalho publicado na sexta-feira na Plos Pathogens e desenvolvido no Instituto de Genética Molecular de Montpellier, França. Os cientistas descobriram que a molécula a que chamaram ICD16 actua não a nível de proteínas virais, em constante mutação, mas sim dos mecanismos celulares que o VIH usa para se multiplicar.

«Em vez de atacar os componentes que o vírus transporta consigo, nós pretendemos atingir aqueles que são usados na célula», afirmou Jamal Tazi, investigador do Instituto Genético e Molecular, citado pela agência France Press.

De acordo com os responsáveis pelo estudo, a descoberta pode abrir portas a «uma nova estratégia para desenvolver uma classe inovadora de medicamentos anti-VIH» dirigida à célula humana infectada e não ao vírus em si, o que evita que este desenvolva resistências.

Esta é, sem dúvida, uma excelente notícia para minimizar um flagelo que está a destruir a humanidade, embora os necessários testes laboratoriais e ensaios clínicos façam prever que, a ter sucesso e ultrapassar todas as fases de teste, este derivado da isoquinolina só estará disponível daqui a alguns anos.

A NOVA ALIANÇA


Faz agora (exactamente a 30 de Outubro) vinte anos que foi publicado o meu primeiro artigo na imprensa nacional. Saiu no "Expresso - Revista", a convite do José Vítor Malheiros (hoje no "Público"), e era uma recensão do livro "A Nova Aliança" de Ilya Prigogine (na foto, o famoso químico que morreu em 2003) e Isabelle Stengers. Republico-o aqui sem mudar nada:

É bem conhecido o aforismo de Santo Agostinho: «Se não me perguntarem o que é o tempo, então eu sei o que é o tempo; mas se me perguntarem o que é o tempo, então eu não sei o que é o tempo.» Ilya Prigogine, Prémio Nobel da Química de 1977, professor da Universidade Livre de Bruxelas e da Universidade de Austin, no Texas, tem passado a vida a investigar o tempo, a procurar «saber» o que este é. É de um novo conceito do tempo - um tempo dinâmico, um tempo onde o futuro é radicalmente diferente do passado, para o melhor e para o pior - que ele, juntamente com a sua colaboradora Isabelle Stengers, nos fala neste livro.

Livro denso, de leitura nem sempre fácil, aborda o tempo numa perspectiva temporal. Trata-se antes de mais da história do tempo. Da história da física e da química do tempo. Pode-se dizer que a física começou com Newton que, no momento fundador que a lenda associa à maçã e à Lua, se apercebeu de que os fenómenos dos céu eram regidos pelas mesmas leis que os fenómenos da terra. O tempo dos céus era portanto o mesmo que o tempo da terra; um tempo absoluto, que flui uniformemente em todo o sítio. Inaugurava-se assim a era do determinismo mecanicista, cuja omnipresença, a partir de então, na ciência moderna está relacionada com o prestígio de Newton e das suas teses.

Não deixa de ser paradoxal o facto de um dos fundadores do cálculo de probabilidades ter sido precisamente Laplace, o mais determinista de todos os deterministas, aquele que ousou afirmar a Napoleão que não precisava da hipótese de Deus para formular a sua mecânica celeste. A noção de probabilidade faz a sua entrada na física do século XIX com Maxwell e Boltzmann. De acordo com Boltzmann, a evolução do passado para o futuro faz-se por espalhamento da desordem, ou, em linguagem técnica, aumento da entropia. Boltzmann é talvez o melhor exemplo dos muitos cientistas que viveram dilacerados pela contradição entre determinismo e incerteza, entre a mecânica e termodinâmica. Há quem diga até que o seu suicídio em 5 de Setembro de 1906 se deveu a esse facto.

O momento da morte de Boltzmann marca o triunfo da probabilidade no estudo de sistemas complexos, por muito que ela seja incompatível com a mecânica newtoniana (Prigogine e Stengers lembram-nos que o é!). Mas se alguém pensasse, nos finais do século XIX, que no mundo microscópico, supostamente simples, ainda havia algumas résteas de determinismo, enganava-se.

No começo do século XX surge, com a mecânica quântica, o paradigma da incerteza aplicado ao mundo microscópico. Os físicos, quase todos, habituaram-se desde então a viver com ela. Houve contudo um, o maior de todos, que não se habituou. Einstein ficou como o último dos deterministas. Se é verdade que a sua teoria da relatividade tem reminiscências da teoria quântica, no sentido em que ambas falam de observadores, não é menos certo que para Einstein, ao contrário de Bohr, existia um mundo real, independente dos observadores e da observação.

Mas o que era o tempo para Einstein? Uma «ilusão, ainda que persistente», que ele próprio o afirmou (numa carta por ocasião da morte do seu amigo M. Besso, escreveu: («Michael precedeu-me por pouco ao deixar este mundo estranho. Isso não tem importância. Para nós, físicos convictos, a distinção entre passado, presente e futuro não passa de uma ilusão, ainda que persistente.») E para Bohr? Será que a nova mecânica é compatível com a termodinâmica, permitindo distinguir o passado do futuro? Prigogine e Stengers lembram-nos também que não, que a mecânica, não importa se clássica se quântica, não permite estabelecer o sentido da seta do tempo.

Então o tempo não existe? Toda a experiência à nossa volta ensina-nos que existem, em particular e mais do que todas, as experiências radicais do nascimento e da morte. Todos nascemos e morremos, e, como Santo Agostinho, temos a noção do que é o tempo, se ninguém nos colocar na posição incómoda de a explicitar. As experiências da Terra, do Sol, da galáxia, são um pouco semelhantes à nossa, no sentido em que, apesar de inanimados, também nasceram um dia e um dia vão «morrer».

Prigogine, um dos maiores especialistas da física dos processos irreversíveis, tem alguma experiência com o tempo, sabe que existe e que a sua função é não só destrutiva como sobretudo construtiva (no século XIX, os tementes da morte térmica do Cosmos pensavam que o tempo era apenas destruidor, mas já Darwin na mesma altura sabia que o tempo é também o «Grande Construtor»). É essa experiência que Prigogine e Stengers nos pretendem transmitir nos últimos capítulos do livro, quando falam da possibilidade, ou melhor da necessidade em certas circunstâncias, do aparecimento de estruturas ordenadas. Com efeito, os sistemas não isolados estão abertos à inovação e em certas e determinadas condições podem transformar-se no sentido da ordem. O mecanismo proposto pela escola de Bruxelas é a chamada «ordem por flutuação», segundo a qual um sistema longe do equilíbrio tem a possibilidade de seguir muitos caminhos, a maior parte dos quais divergentes. Nas bifurcações, um pequeno ruído pode levar a que o sistema se encaminhe para uma história radicalmente nova. De acordo com essa interpretação, o tempo é feito de necessidade (caminhos múltiplos) e acaso (ruído), sendo o resultado (transformação, história) bem real.

Falamos de acaso e necessidade, os «ingredientes gregos» retomados por Jacques Monod no contexto da biologia molecular. Deve realçar-se que este casamento fecundo do caos com a ordem constitui um paradigma em emergência, com uma relevância cada vez maior na ciência contemporânea. Cada autor gosta de usar o seu próprio vocabulário e pretende a prioridade no perscrutar de tal ou tal aspecto. Mas, no fundo, todos falam do mesmo, todos estão confrontados com uma realidade que se compraz na repetição, qualquer que seja a escala ou o sistema observado. Assim, se Prigogine fala de «ordem por flutuação» e de «estruturas dissipativas», H. Haken, físico da Universidade de Stuttgard, na Alemanha, prefere falar de «sinergética» neologismo por ele criado para significar comportamento cooperativo, sendo o seu modelo preferido o laser. M Eigen, professor em Gottingen, Prémio Nobel da Química em 1967, prefere falar em «jogo», sendo um dos seus campos de trabalho a origem da informação genética dos seres vivos (a Gradiva editou em 1988, de M. Eigen e R. Winkler, o seu livro de divulgação mais conhecido, intitulado precisamente "O Jogo"). Outros têm outras linguagens e servem-se de outros exemplos.

Todos eles, porém, são afinal parceiros no jogo da descoberta dos fenómenos complexos, jogo em pleno desenvolvimento e que vai entrando nos manuais de ciência, outrora ocupados com os sistemas simples. Prigogine, no entanto, consegue ir além do domínio estrito da sua especialidade, arriscando a tese de que o que é válido para a complexidade químico-física é também válido, ou pelo menos útil, para a complexidade que é objecto de estudo das ciências ditas humanas - a sociologia, a história, a filosofia. O título do livro "A Nova Aliança" pretende resumir essas novas possibilidades de confronto e de síntese entre as ciências exactas e as ciências humanas. Se nos anos 60 C. P. Snow contrapunha Shakespeare e a segunda lei da termodinâmica, dizendo que era sinal de incultura desconhecer tanto um como a outra, Prigogine e Stengers vêm-nos dizer que a segunda lei e os desenvolvimentos recentes da física moderna talvez nos possam ajudar a compreender Shakespeare. Para fornecer apenas uma ilustração, vejamos como Bohr utiliza o castelo do Hamlet numa bela metáfora sobre o facto de na mecânica quântica a realidade depender do observador (a citação é retirada da tradução inglesa de "A Nova Aliança, Order out of Chaos, Man´s New Dialogue with Nature", Bantam Books, 1984, que apresenta mais modificações e acrescentos em relação ao original francês):

«Não é estranho como este castelo muda logo que imaginamos que Hamlet viveu aqui? Como cientistas, acreditamos que um castelo consiste em pedras e admiramos o modo como o arquitecto as reuniu. As pedras, o telhado verde devido à pátina, a talha de madeira na igreja, constituem o castelo. Nada disto devia ser modificado pelo facto de Hamlet ter vivido aqui, e no entanto é completamente modificado. Subitamente as paredes e as muralhas falam uma outra linguagem...Tudo o que sabemos sobre Hamlet é que o seu nome é referido numa crónica do século XIII...Mas toda a gente conhece as questões que Shakespeare tinha para ele colocar, as profundidades humanas que tinha para ele revelar, pelo que Hamlet também tinha de ter um lugar na Terra, aqui em Kronberg.»

Hoje em dia, já não é só a física que tem a aprender da sua história, mas são a própria história e a literatura, que, salvaguardando tudo o que há a salvaguardar, têm a aprender com a física. O leitor, se pretende ser também parceiro, ainda que modesto, nesse jogo da descoberta da complexidade, deve ler "A Nova Aliança"! Leia devagar, sublinhando, não se importando com o que não percebe (alguns tradutores brasileiros também não perceberam...) e descontando as gralhas que maldosamente caíram aqui e ali, principalmente onde não deviam. E no fim, conclua com Prigogine e Stengers: «Chegou o tempo de novas alianças, desde sempre firmadas, durante muito tempo ignoradas, entre a história dos homens, de suas sociedades, de seus saberes, e a aventura exploradora da natureza.»

Ilya Prigogine e Isabelle Stengers, "A Nova Aliança", Gradiva, 1987

Tradução brasileira de M. Faria e M. J. M. Trincheira, revista por J. P. Mendes e J. Branco, com tradução do prefácio e dos apêndices da 2ª edição francesa da Gallimard, de 1986, respectivamente por A. M. Baptista e A. I. Buescu.

sábado, 27 de outubro de 2007

O quotidiano e a vivência dos alunos

Na sua generalidade, os documentos curriculares oficiais relativos ao Ensino Básico recomendam metodologias que apelem “ao intercâmbio de experiências vividas pelos alunos e à sua participação, individual e colectiva, na vida da turma, da escola e da comunidade” e que rentabilizem “questões emergentes do quotidiano e da vida dos alunos” (por exemplo, Decreto-Lei 6/2001 de 18 de Janeiro; Ministério da Educação, 2000, 2001).

As orientações da tutela têm – como, aliás, devem ter – repercussões a diversos níveis, nomeadamente ao nível da construção dos manuais escolares.

Folheando diversos manuais para esse nível de ensino, percebi que a referida recomendação é amplamente seguida, e que na área curricular disciplinar designada por Formação Cívica é, com algumas excepções, dominante.

Para ter uma noção mais precisa do que acabei de afirmar, analisei com detalhe alguns manuais que foram publicados na sequência da Reorganização Curricular do Ensino Básico (2001) e que são, sublinho, de adopção facultativa nas escolas.

Sem recusar valor educativo a algumas das fichas que compõem esses manuais, devo dizer que grande parte delas leva ao extremo a dita metodologia, apelando directa e despudoradamente a aspectos que envolvem a privacidade e intimidade dos alunos.

Pede-se-lhes, por exemplo, que façam uma lista das suas qualidades e defeitos pessoais; que enunciem os seus hábitos alimentares e de higiene; que refiram o programa de televisão seu preferido. A isto segue-se a recomendação de partilha e discussão com colegas e professor.
Tratar-se-á de pedidos inofensivos a que todos os alunos poderão atender sem problemas? Mesmo sem se aprofundar muito a reflexão, com facilidade se percebe que não. Na verdade, os professores com alguma sensibilidade podem constatar que certos alunos têm dificuldade em expor-se no plano pessoal; que outros não têm asseguradas, por razões económicas e sociais, as condições de alimentação e de higiene, nem depende de si melhorá-las. Por outro lado, aquilo que cada aluno vê na televisão, na sua casa, não diz directamente respeito à escola.

Entenda-se que, com esta observação, não recuso o dever da escola incentivar, sempre com grande sensatez, a participação construtiva de todos os alunos, de os esclarecer sobre questões de alimentação e de higiene, e de os tornar selectivos em relação a opções estéticas e culturais. Porém, tudo isto pode fazer-se sem colocar cada um numa situação potencialmente delicada e constrangedora.

Devo dizer que os exercícios acima referidos tornam-se inofensivos quando comparados com outros que solicitam os alunos a completar frases como a seguinte: “O meu maior problema neste momento é...”; ou a preencher a árvore genealógica da família e a referir o aniversário dos vários membros; a descrever e caracterizar a sua habitação; a declarar o seu estado de saúde e dos seus familiares directos; a dissertar sobre as suas relações sociais e comportamentos que delas decorrem; ou a esclarecer como ocupam os tempos livres.

Só um grande grau de ingenuidade permite supor que todos os alunos serão sinceros e darão a conhecer aspectos da sua vida e do contexto que a envolve. O mais provável e, assinalamos, o mais desejável é que contornem as perguntas e apresentem a versão que acham socialmente desejável. Os que assim procederem terão feito uma aprendizagem crucial: que existe uma diferença entre o que podemos partilhar com os outros e o que desejamos guardar para nós; entre o que podemos partilhar com pessoas próximas e o que não queremos partilhar com as demais.
Por outro lado, vislumbra-se o melindre que certas perguntas, reportadas a experiências individuais, podem causar à criança ou ao jovem mais comum. Na verdade, todas as famílias têm as suas histórias e peculiaridades, que certamente não gostam de saber transportados para uma sala de aula. Se avançarmos no nosso raciocínio e nos concentrarmos em alunos com problemas graves de ordem familiar, económica, de saúde, de justiça ou outros, percebemos melhor a inadequação de tal abordagem. A este propósito não posso deixar de citar Philippe Perrenoud (1995, 183-184), pela clareza com que se debruça sobre esta problemática:
[assuntos] "que dizem respeito à maneira de se estar no mundo e com os outros. Avançamos aí num terreno bastante movediço (…) até que ponto teremos o direito de pedir a alguém para se exprimir, expor as suas ideias, confessar as suas preferências, declarar os seus sentimentos e os seus valores? O diálogo mais fácil de desencadear gira à volta de temas como o dinheiro, a violência, a televisão, o racismo, a saúde, o consumo, a alimentação, os tempos livres. Ora, em todos estes temas, os alunos estão solidários com os valores familiares e têm experiências por vezes dolorosas, que umas vezes têm desejo de guardar para si e outras de falar em excesso sobre elas (Bain 1991). As pedagogias mais activas e interactivas podem colocar uma parte dos alunos em dificuldades, visto que lhes pedem para falar sobre temas que são extremamente pessoais, que não têm nada a ver com a escola.”
Paralelamente à questão ético-relacional que aflorei, parece-me haver outra de importância equivalente: as abordagens metodológicas que apelam às experiências de vida mostram uma verdadeira eficácia pedagógico-didáctica ao nível da aquisição de competências cívicas ou constituem sugestões, mais ou menos bem intencionadas, que emergem do senso-comum elevado a teoria? Por palavras mais simples, os alunos adquirem mais e melhores competências cívicas se o ensino que lhes é proporcionado for contextualizado no seu quotidiano afectivo e relacional?

Atendendo ao estado actual do conhecimento, penso que ainda não é possível avançar uma resposta segura. Estudos realizados nos domínios da Psicologia e da Pedagogia têm proporcionado saberes importantes que esclarecem o processo de aprendizagem, devendo, por isso mesmo, ser tidos em conta quando se organiza, desenvolve e avalia o currículo, mas esses estudos reportam-se sobretudo às aprendizagens académicas de carácter disciplinar, estando as aprendizagens de atitudes envoltas num grande desconhecimento. Vítor Trindade (1996, 28), coloca o problema nos seguintes termos:
“A controvérsia que se levanta na aprendizagem das atitudes é a de saber que tipo de aprendizagem é a mais eficaz, se a proveniente de modo directo, de processos experimentais e experienciais, se a de processos vicários. A investigação não tem ainda, que conheçamos, resposta para esta questão (…).
De modo complementar, é legítimo fazer uma pergunta algo incómoda: o que aprendem realmente os alunos quando o ensino que lhes é proporcionado incide na exploração das suas vivências individuais e colectivas, ainda que estas sejam devidamente localizadas na vida da turma, da escola e da comunidade?

Explico melhor: mesmo que concedamos o benefício da dúvida a tal metodologia e admitamos que poderá ter alguma eficácia pedagógica, não podemos deixar de conjecturar que a sua utilização, exclusiva ou predominante, pelo facto de fazer apelo à auto-referenciação, restringe os horizontes dos aprendizes. Na verdade, além do conhecimento que eventualmente venham a adquirir de si e dos seus colegas mais próximos, que conhecimentos adquirirão de pessoas, ideias, conceitos ou acontecimentos fundamentais para a Humanidade, mas que são exteriores ao seu contexto?

Referências bibliográficas:
- Abrantes, P; Figueiredo, C.; Veiga Simão, A. (2002). Novas áreas curriculares. Ministério da Educação: Departamento da Educação Básica.
- Ministério da Educação (2000). Educação, integração, cidadania: reorganização curricular do ensino básico. Ministério da Educação: Departamento da Educação Básica.
- Ministério da Educação. (2001). Currículo Nacional do Ensino Básico: competências essenciais. Lisboa: Departamento da Educação Básica.
- Perrenoud, Ph. (1995). Ofício de aluno e sentido do trabalho escolar. Porto: Porto Editora.
- Portugal. (2001). Reorganização Curricular do Ensino Básico. Decreto-Lei n.º 6/2001 de 18 Janeiro.
- Trindade, V. (1996). Estudo das atitudes científicas dos professores: do que se pensa ao que se faz. Lisboa: Instituto de Inovação Educacional.

Imagem: A família presidencial (1967), de Fernando Botero. In M. Hanstein (2004). Botero. Taschen/Público.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Thíasos representa Agamémmon

O grupo de teatro Thíasos, do Instituto de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, na sua louvável e já considerável tradição de dar a conhecer as grandes peças gregas da Antiguidade, apresenta de novo a tragédia Agamémmon de Esquilo, estreada em Abril do corrente ano.

Trata-se da única parte da trilogia Oresteia, desse autor que viveu entre 525 e 456 a.C. – as outras partes são Coéforas e As Euménides –, a chegar completa aos nossos dias.

Na tragédia em causa, o pano de fundo é o regresso dos heróis gregos que combateram em Tróia. No início da guerra, para que o seu exército alcançasse essa cidade, Agamémnon sacrificou a filha Ifigénia à deusa Ártemis, que decidiu poupar a jovem e transformá-la em sacerdotisa. Clitemnestra, a esposa de Agamémnon, supondo que Ifigénia estava morta, urdiu um plano de vingança contra o marido: tornou-se amante de Egisto, filho de Tiestes e quando Agamémnon regressou ao lar, após dez anos de ausência, participaram ambos no seu assassinato e no da princesa troiana Cassandra, que o vitorioso guerreiro havia recebido por escrava.

Local: Teatro da Cerca de São Bernardo (Pátio da Inquisição, Coimbra)
Data: 31 de Outubro; 21h30
ENTRADA LIVRE

MORREU O NUNO

Homenagem possível a um poeta acabado de partir. Morreu o Nuno Júdice, coitado, prematuramente, o que é injusto. Com aquele seu ar desacti...