quinta-feira, 5 de abril de 2007

Quimeras Humanas

Poderão células geneticamente diferentes coexistir no mesmo organismo?

A Quimera é uma figura da mitologia grega, um monstro com cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de dragão ou serpente. Produto da união de Equidna - metade mulher, metade serpente - com o gigante Tífon. Terá sido morta pelo herói coríntio Belerofonte.

Designam-se por quimeras os animais constituídos por mais do que um tipo de células de origem diferente, recorrendo à fértil fonte de imagens que a mitologia grega nos legou. A sua origem resulta de erros no processo de fecundação e subsequente divisão celular. Esses erros podem ocorrer na meiose e gametogénese – formação das células sexuais nas espécies sexuadas -, na fertilização ou no desenvolvimento embrionário.

Mesmo na nossa espécie, há indivíduos com células de dois tipos, ou mesmo mais, contendo informação genética diferente. Como é que isso ocorre?

Tradicionalmente, os manuais explicavam que, quando um espermatozóide se fundia com a membrana celular do óvulo, havia uma alteração das propriedades da membrana que impedia que qualquer outro espermatozóide se ligasse ao mesmo óvulo. Isso é, de facto, o que acontece na maior parte das situações. Mas, nem sempre.

Aqui temos o caso em que uma teoria estabelecida foi parcialmente refutada pelos factos, o que implicou a sua revisão – algo em que a ciência é fértil, para surpresa dos seus detractores.

Por exemplo, pode suceder que um indivíduo tenha um único tipo de genes maternos, mas dois tipos de genes paternos, em resultado de o óvulo ter sido fertilizado por dois espermatozóides do mesmo pai, situação designada por triploidia (as nossas células são normalmente diplóides, contendo 2n cromossomas: metade de origem materna e metade de origem paterna). Surpreendentemente, esses erros são muito mais frequentes do que se esperava. Graças aos desenvolvimentos da biologia molecular e das técnicas com marcadores genéticos, é hoje possível identificar situações de quimerismo. A triploidia (uma forma de quimerismo) é relativamente frequente na nossa espécie: ocorre em cerca de 1% de todas as concepções. E está presente em mais de 10% de todos os abortos espontâneos. É tudo menos ocasional. O que faz com que o fenómeno seja raramente observado é a reduzida viabilidade dos organismos assim constituídos.

A condição triplóide não é estável e tendem a perder-se parte dos cromossomas, passando à condição de células diplóides. Só que os cromossomas perdidos podem ser diferentes em diferentes células, originando populações de células diferentes no mesmo indivíduo. E há uma série de combinações possíveis.

A negociação da interacção entre estas células geneticamente (embora só parcialmente) diferentes nem sempre é fácil. Podemos imaginar que o sistema imunitário do indivíduo possa atacar parte das suas células por não as reconhecer como suas. Não admira, pois, que a maior parte desses casos seja inviável.

O caso de triploidia recentemente descrito na publicação Human Genetics por Vivienne Souter e colaboradores é extraordinário a vários títulos. O artigo descreve a existência de dois gémeos em que um é aparentemente um rapaz e o outro é um verdadeiro hermafrodita. Estes gémeos têm a mesma informação genética proveniente da mãe, mas apenas partilham metade da proveniente do pai. Esta condição pode ter ocorrido ou por um óvulo que foi fecundado por dois espermatozóides – depois tendo ocorrido a separação das células embrionárias em desenvolvimento num estádio subsequente, como normalmente ocorre na formação de gémeos idênticos -, ou por o óvulo se ter separado em duas células que foram, cada uma, fecundadas por dois espermatozóides.

Esta situação de gémeos que não são monozigóticos nem dizigóticos (falsos gémeos), resultantes de triploidia havia sido prevista em 2003 por um outro investigador (Golubovsky). A sua descoberta veio confirmar que a teoria construída tem poder predictivo: permite prever situações ainda não conhecidas à data da sua formulação.

Trata-se de uma situação extremamente rara. E não fora o facto de um dos gémeos ser hermafrodita teria, porventura, passado despercebida. Porque é que um dos gémeos é hermafrodita e o outro não? Porque a proporção de células XX e de células XY varia de tecido para tecido nos dois gémeos.

A quantidade de erros que podem acontecer no processo de produção de um organismo é imensa. Erros genéticos, erros no processo de desenvolvimento. Muitos desses casos são tão frequentes que não os designamos sequer por erros: são meros variantes. Alguns de nós nascem com um número excessivamente elevado de mutações levemente deletérias, enquanto outros apenas com algumas. E outros há que nascem com apenas uma mutação terrivelmente devastadora. Quais são os mutantes? Somos todos mutantes.

8 comentários:

Unknown disse...

Excelente posta! Cinco estrelas.

Gosto do final: somos todos mutantes. E somos todos espécies transicionais, acrescentaria :)

Anónimo disse...

são postas destas que tornam o DRN uma leitura obrigatória. parabéns.

Anónimo disse...

Gostei do texto - a título de curiosidade, outro dia na Série CSI, não se apresentada na SIC ou AXN, apresentaram um caso de uma quimera humana em que a solução do crime passava por perceber este facto (o ADN de uma parte do corpo era diferente de outra parte, por fusão de dois gémeos falsos...).

CA disse...

A existência de quimeras humanas por fusão de dois zigotos tem repercussões filosóficas e éticas: se uma pessoa pode ser resultado da fusão de dois zigotos é mais difícil considerar o zigoto como pessoa. Ora saber se se considera o zigoto como pessoa está na base das grandes discussões sobre as leis relativas à procriação assistida e à criação de embriões para utilização de células estaminais.

Anónimo disse...

thaysa
É eu assistir o episódio de CSI que falava sobre quimerismo em humanos e me chamou atenção para pesquisar mais sobre o tema!!
Parabéns pela matéria, bem clara !!!

Unknown disse...

vladimir mellop brasil , gostei muito não sabia do que se tratava após ver um episódio de csi fiquei intrigado e fui buscar na internet me esclaraci so bre se haviam csasos reais , e isso me levou à me eprofundar nesse fato raro de nossa espécie muito obrigado.

Anónimo disse...

Assisntindo um episódio de HOUSE que tratava sobre assunto. Entrei no site em busca de respostas. Achei interessante a abordagem deste site.Parabéns!!!

Anónimo disse...

Ana.
Adorei a matéria não sabia que poderia acontecer realmente, pensei que era pura ficção quando li fiquei maravilhada.